Por que nunca devemos nos esquecer do 24 de Novembro?


Meu celular tocava insistentemente enquanto eu tentava ignorar a trepidação do aparelho sobre a mesa. O som da chamada logo foi abafado, devolvendo-me à rotina tranquila de uma manhã de sábado, em novembro de 2012, numa sala de pós-graduação em Comunicação do Instituto Juvêncio Terra, em Vitória da Conquista.

Segundos depois, uma sequência impaciente de ligações rompeu a atmosfera lânguida da aula, ministrada pelo professor Marcelo Chamusca, que dividia uma disciplina com a professora Márcia Carvalhal voltada à assessoria de imprensa e gestão de crise. Pela terceira vez, recusei a chamada, indiferente.

Voltei minha atenção à fala dos professores, mas o telefone tocou novamente — e a insistência parecia evidenciar a inquietação ou carregar a urgência de quem quer que estivesse do outro lado.

Em menos de um minuto, o celular voltou a tocar. Atendi sem expectativa. Os segundos seguintes foram preenchidos por uma voz trêmula e seca que informou que Procópio Alencar, prefeito eleito de Jussiape, havia sido alvejado. Fechei meus olhos e respirei fundo.

Atendi a segunda ligação, ainda com as palavras reverberando na minha cabeça. Alvejado? Quem? Morto? O corpo demorou a processar o que os ouvidos já tinham captado.

Não sentia meus pés tocarem o chão e, já distante da sala, a sensação permanente de amargor na boca se misturava às vozes distantes ao fundo. Os gritos de pedidos de socorro e o choro do outro lado do telefone deixavam tudo ainda mais confuso enquanto eu tentava voltar à realidade.

o atentado



Uma série de ataques deixou três pessoas mortas em 24 de novembro de 2012, em Jussiape, município da Bahia com menos de 10 mil habitantes. Entre eles, Procópio Alencar, de 76 anos, eleito com 58,48% dos votos válidos em outubro daquele mesmo ano; sua esposa, Jandira Alencar, de 71; e o funcionário terceirizado da Embasa, Oderlange Pereira, de 46 — além de três pessoas feridas.

O atirador Claudionor Galvão de Oliveira, conhecido como Coló, de 43 anos, atingiu dois policiais militares antes de ser morto em confronto. Ele havia invadido o consultório médico do prefeito, anexo à residência, e aberto fogo. Jandira foi atingida no centro da cidade, quando retornava para casa, e Oderlange, baleado na cabeça enquanto conversava com amigos em um bar. Ele ainda chegou a ser socorrido, mas não resistiu.

Coló ainda trocou tiros com policiais militares, ferindo dois deles. Um refém, confundido como cúmplice, também foi alvejado durante o confronto. O atirador foi abatido no centro da cidade, encerrando a sequência de violência que abalou o município.

vítimas invisíveis

Fui assessor de imprensa de Procópio Alencar, que assumiu a Prefeitura em 2010 após a cassação do ex-prefeito Vagner Freitas. Procópio era vice na chapa de Vagner. A convivência direta com a tragédia e, anos mais tarde, o esforço para compreendê-la expuseram-me às zonas mais cinzentas entre a dor, o peso da responsabilidade e o silêncio coletivo que costuma se seguir a um trauma.

O atentado não apenas ceifou vidas, mas também produziu o que chamo de “vítimas invisíveis”. As principais vítimas, evidentemente, foram aquelas que perderam a própria vida e seus entes queridos. Mas, contra o senso comum, é preciso reconhecer também os filhos do atirador. Carregar o peso simbólico de um crime dessa magnitude é uma forma silenciosa de punição social, difícil de mensurar e impossível de esquecer.

Há ainda uma vítima coletiva: a comunidade de Jussiape, que até hoje carrega o trauma inscrito em sua memória recente, marcada por estigmas que o tempo ainda não cicatrizou.

emoção e opacidade

O episódio permanece envolto por uma névoa de emoção que dificulta a compreensão racional do ocorrido. Embora compreensível, esse sentimento nublou a possibilidade de enxergar nuances, de compreender os mecanismos sociais, políticos e psicológicos que culminaram naquela manhã fatídica.

Há evidências e motivações ainda enterradas, soterradas não só pela dor, mas pela cristalização da história, quando uma narrativa se repete tanto que passa a parecer definitiva.

Na época, a imprensa realizou uma cobertura inicialmente sensata, sem ceder de imediato ao sensacionalismo que costuma acompanhar tragédias. Ainda assim, faltou aprofundamento. 

Os jornalistas não chegaram a explorar devidamente o perfil dos envolvidos nem as tensões pré-existentes que fermentaram o desastre.

Claudionor Galvão, o atirador, foi retratado apenas como uma espécie de vítima-algoz: um homem frustrado, supostamente humilhado após a derrota eleitoral, que reagiu com fúria. 

Esse enquadramento simplificou o enredo e empobreceu o debate. Ao reduzir um evento complexo a um duelo entre vencedores e vencidos, a imprensa, talvez sem perceber, perpetuou a polarização que o próprio atentado simbolizava.

Anos depois, percebo que as feridas de Jussiape não se limitam às perdas humanas. Elas se manifestam nas conversas sussurradas, nas hesitações em relembrar, no desconforto coletivo diante do passado.

O que não se narra, não se elabora — e o que não se elabora, repete-se de outros modos. Revisitar o atentado, com a distância que o tempo permite, é também uma tentativa de enxergar as camadas que a emoção encobriu. É reconhecer que, por trás das manchetes, há vidas que seguiram — algumas marcadas para sempre, outras tentando, em silêncio, aprender a conviver com o que jamais deveria ter acontecido.


é preciso abdicar do senso comum

O atentado precisa ser debatido com seriedade para que seja compreendido e superado. Entender o que ocorreu é fundamental para evitar que um evento trágico com essas características volte a se repetir. Leituras simples e superficiais sobre a tragédia revelam o quanto a generalização funciona como uma fuga típica de quem desconhece os fatos e se apoia no senso comum.

Ao tratarmos o 24 de Novembro da mesma forma que abordamos assuntos banais, corremos o risco de transformar alegações genéricas em falácias.

Em um cenário no qual o pensamento maniqueísta prevalece, o dualismo moral reduz as pessoas a categorias estreitas — boas ou más, do próprio grupo ou do grupo contrário. 

O pensamento binário se instala com facilidade e molda o discurso de quem o adota. As vítimas foram vítimas — e isso é indiscutível. Não há argumento capaz de relativizar isso.

razão, lucidez e o papel do jornalismo

Entender o evento trágico requer lucidez e razão. A emoção, embora legítima, não deve interferir no momento da apuração dos fatos. A tragédia precisa ser relembrada, estudada e tratada com seriedade.

Cabe ao jornalismo — mais do que noticiar — desmistificar paradigmas, enfrentar tabus e oferecer ao público uma análise crítica dos acontecimentos, que, por integrarem a história da humanidade, exigem compreensão e responsabilidade.

como pensar é árduo, odiar se torna fácil

O ódio está constantemente presente nos debates sobre o atentado em Jussiape. Na maioria das vezes, a busca por respostas imediatas para um caso tão complexo, como as motivações que levaram o atirador a matar concidadãos, impede as pessoas de raciocinar de forma humana e de levantar as perguntas essenciais.

É curioso observar como o ódio nasce do medo, da insegurança e da ignorância. Basta olhar para a tragédia e perceber como, a partir dela, se teceu um discurso intolerante voltado a uma plateia silenciosa e sedenta por violência. 

A ideia de que somos um povo que expressa ódio com facilidade torna-se evidente, embora persista o mito de que somos naturalmente pacíficos. Esse engano se perpetua porque é assim que desejamos nos ver — e como desejamos ser.

a memória do ódio e o trauma coletivo

A tragédia de 24 de novembro talvez represente a expressão máxima do ódio na história recente de Jussiape: quatro pessoas mortas, outras três feridas e um trauma coletivo que ainda reverbera pela cidade.

Mesmo assim, ainda há quem, às escondidas, manifeste satisfação velada pela morte das vítimas — uma satisfação alimentada pelo ódio. Há, inclusive, quem tente justificar o ato do atirador.

Não há justificativa. Não pode haver satisfação diante da barbárie. É difícil admitir, mas a violência ocorre sempre diante dos nossos olhos — e não foi diferente naquele dia. A internet, por sua vez, ampliou o alcance das expressões de ódio e acelerou sua circulação, alcançando uma intensidade antes inimaginável.

o conforto do senso comum e a necessidade da razão

É sempre fácil criar respostas instantâneas para questões difíceis — e é exatamente isso que costuma acontecer quando se fala no 24 de Novembro. Vivemos um tempo em que o verdadeiro desafio é outro: agir pautado pela razão. Pensar é doloroso, mas é também o único caminho possível para que a história não se repita.

por que jamais se esquecer do 24 de novembro?

É inquestionável que a fatalidade ficou gravada como um trauma coletivo. Além dos familiares das vítimas padecerem de sofrimento intransponível, muitos que vivenciaram a tragédia tiveram de lidar com o impacto dos fatos. Amigos, colegas de trabalho, opositores, admiradores e seguidores — sem distinção alguma — foram atingidos de diferentes formas. Ainda assim, não nos cabe mensurar a dor alheia nem comparar o sofrimento de quem perdeu um pai, uma mãe ou um amigo.

Uma postura desatenta, fruto da recusa em refletir, ainda paira sobre aqueles que desejam esquecer o ocorrido — como se enterrar o acontecimento pudesse sanar as perdas. Outros, porém, abdicam do pouco de humanidade que lhes resta e se permitem julgar, sem critério e sem respeito à dignidade humana, as próprias vítimas.

Hannah Arendt, filósofa do século 20, sob a premissa do pensamento político, defendia que a maldade é forjada nas fendas mais profundas da banalidade. Ao contrário da bondade, a maldade pode se manifestar de forma comum e corriqueira, sem precisar ser extraordinária.

George Santayana, pseudônimo de Jorge Agustín Nicolás Ruiz de Santayana y Borrás, filósofo, poeta e ensaísta espanhol, sustentava que “aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. O aforismo aparece em A Vida da Razão, livro publicado em 1905, e serve para ilustrar como a história da humanidade é, em grande parte, uma história de horror.

Por isso, há quem defenda que Mein Kampf (Minha Luta, em tradução para o português), livro no qual Adolf Hitler expôs o ideário antissemita e nacional-socialista de extrema direita, que inspiraria o partido nazista, deveria ser extinto e retirado do alcance do público. 

Trata-se de um equívoco perigoso e, sobretudo, descuidado: restringir o acesso a um documento histórico e cultural — por mais repulsivo que seja — é um gesto que uma sociedade democrática não deveria sequer cogitar. Ainda assim, o livro foi banido em 1945.

A censura a Minha Luta e a tentativa de apagamento, ou de imposição de opacidade ao 24 de Novembro, não são apenas questionáveis, mas ineficientes. 

O esforço de esquecer os fatos do passado não é a melhor forma de combater ideias desumanas ou diminuir a dor. Os acontecimentos que marcaram a história precisam ser debatidos, analisados e, se necessário, combatidos com rigor, sempre à luz da lei. 

Uma justificativa para essa defesa é a de que impedir um cidadão adulto de se informar sobre a história ou sobre ideias políticas consideradas perigosas é uma forma ineficaz de controle sobre o indivíduo. 

Essa tática nada mais é do que uma investida para minar as bases da democracia. O leitor não pode ser tratado como incapaz de tirar suas próprias conclusões sobre o passado e, justamente por isso, não pode ser excluído do debate acerca dos fatos históricos.

o papel da imprensa

Jornalismo é jornalismo — e não há como se esquivar de sua função primordial: lidar com aquilo que muitos evitam, por mais dolorosos que sejam os fatos. Aprender com o passado para não repetir os mesmos erros é uma máxima já puída, mas continua verdadeira.

A tragédia, como acontecimento factual, exige cuidado e respeito. Não podemos esquecê-la; a humanidade precisa manter-se vigilante diante de sua própria capacidade destrutiva, como fincaria Arthur Schopenhauer, filósofo do século 18 dedicado a investigar a natureza humana. Por outro lado, o papel do jornalismo não se limita a elucidar crimes. Cabe a ele tratar dos fatos e expor à sociedade o verossímil que circunda o factual.

A imprensa não toca na banda, mas vê a banda passar, já proclamaria Joel Silveira. E, justamente porque observa, registra e interpreta, assume a tarefa de iluminar o que a memória pública insiste em relegar à sombra.