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Para Zygmunt Bauman, filósofo e sociólogo polonês que nos deixou no início de 2017, a pressa é inimiga dos vínculos. Numa era em que tudo corre, ninguém se apega. É essa uma das marcas mais visíveis da humanidade moderna — ou pós-moderna, se quisermos adotar o termo adotado pelo próprio Bauman, para quem o pós-modernismo é menos uma ruptura e mais uma fissura da modernidade.
Ao empregar a metáfora da liquidez, Bauman denuncia a velocidade com que transformamos nossas relações sociais ao longo dos séculos. Imagine um homem arrancado de qualquer época e trazido à modernidade: o choque seria mais profundo do que se transportássemos esse mesmo homem da Antiguidade para a Idade Média. A modernidade, sob a ótica baumaniana, não apenas muda o ritmo da vida — ela o acelera até a vertigem.
Poderíamos situar o início dessa era em algum ponto nebuloso entre os séculos XVI e XVIII. Foi ali que o tempo começou a correr com pressa e os laços humanos passaram a se dissolver sob o signo da velocidade — a marca indelével da modernidade. Ainda que muitos historiadores afirmem que a Idade Moderna chegou ao fim, continuamos imersos nela. A chamada pós-modernidade é, talvez, apenas o espelho fragmentado da própria modernidade. Afinal, a contemporaneidade é um presente que nunca termina.
Bauman nos alerta: a modernidade trouxe consigo o extremo da racionalidade — e com ela, a incapacidade de lidar com o que nos é estranho. O homem pós-moderno racionaliza tanto sua existência que acaba vítima da própria razão. Prioriza o supérfluo, organiza-se em torno de ideias frágeis e, muitas vezes, irracionais. Pensemos nas vinte e quatro horas de um dia e no quanto dedicamos a eventos e preocupações que, sob uma análise mais cuidadosa, se revelam triviais. Somos, paradoxalmente, racionais e irracionais — uma contradição que Bauman reconhece como a própria engrenagem da modernidade líquida.
O amor, por exemplo, consolidou-se como fundamento da família, mas nem sempre foi assim. Esse sentimento, revestindo-o de novos significados — e de uma fugacidade que Marx, sem ser poeta, já havia intuído ao dizer que “tudo o que é sólido desmancha no ar”. O homem moderno, ao tornar tudo mutável, tornou também o amor efêmero. Basta olharmos para o século XIX e percebermos o quanto o amor se transformou de lá para cá e ganhou diferentes leituras e revestimentos ao longo desse tempo.
No mundo líquido de Bauman, a rede é o símbolo perfeito dessa fragilidade. Nela, as conexões são instantâneas — e descartáveis. As redes sociais, que nasceram sob o nome de “sites de relacionamento”, escancaram o quanto nossas relações são superficiais. Diferentemente dos vínculos do passado, nas redes não há contrato de fidelidade nem a exigência de presença. Basta um clique para deixar de seguir alguém — e nenhuma explicação é necessária.
As “reações” virtuais se tornaram o novo índice de aprovação e afeto. O “eu” projetado nas telas é um constructo hiper-realista: existe mais plenamente no digital do que na realidade. Como escreveu Vinicius de Moraes, “que seja infinito enquanto dure” — a própria definição de impermanência que Bauman enxergaria como lema da modernidade líquida. Mas se a fluidez parece libertar, Bauman nos faz a pergunta que evita o conforto da resposta fácil: estamos realmente felizes? A modernidade nos oferece uma promessa de felicidade infinita, mas nunca nos mostra o caminho.
A ambivalência, outro produto da modernidade, é nosso estado natural. Um mesmo indivíduo pode amar e detestar a mesma coisa, no mesmo instante — e não ver contradição nisso. É o preço de um mundo que perdeu o lastro das certezas.
A pós-modernidade: uma fissura indigesta da modernidade
Se recorrermos a “O que é pós-moderno?”, de Jair Ferreira dos Santos, veremos como suas reflexões se entrelaçam às de Bauman. Vivemos cercados por um desfile de imagens (da televisão, das revistas, da internet) que simulam o real com uma perfeição inquietante. Santos chama isso de simulacro: a realidade convertida em signo.
Nas eras anteriores, os simulacros (mapas, estátuas, pinturas) eram representações do real. Na pós-modernidade, tornaram-se o próprio ambiente em que vivemos. A tecnociência não apenas reedita o real, mas o substitui. Como observa Santos, os materiais e processos simulantes reproduzem com mágica e perfeição o real.
Hoje, muitos preferem ser vistos através de uma fotografia filtrada do que se apresentar em carne e osso. É o triunfo do simulacro: o real é duro, incômodo; a imagem, dócil e maleável. Estetizado, o simulacro intensifica o real, tornando-o mais lustroso, mais desejável. Entre a vaidade e a fragilidade do eu, nasce uma inveja disfarçada — a inveja pós-moderna.
Nas redes sociais, essa dinâmica é o motor. Cada usuário produz uma versão idealizada de si mesmo, projetada para ser admirada, como uma indústria do narcisismo. Likes substituem o afeto; engajamento, o amor. A inveja digital é polida e silenciosa, mas profundamente corrosiva. Muitos fabricam acontecimentos, posam para si mesmos, constroem narrativas cuidadosamente editadas. Alimentam o ego com a ilusão de relevância — um banquete de simulacros servido na tela do celular.
Bauman, no entanto, não se entrega ao pessimismo. Seu olhar é crítico, mas não desesperançado. Para ele, ainda há lacunas onde a ética pode florescer. Inspirado numa leitura da esquerda marxista não ortodoxa, o filósofo afirma ser impossível sustentar a ética num mundo em que o lucro é o valor supremo. A saída estaria em resgatar o sentido de comum unidade, a base da verdadeira comunidade. Uma comunidade fundada na cooperação, na solidariedade e, talvez, em uma forma de felicidade menos líquida — e mais humana.
