Torto Arado é literatura?

Will Assunção é especialista em ensino de gramática e literatura e mestrando no ProfLetras na UESB

Fotografia de Giovanni Marrozzini, da série Nouvelle Semence (2010), realizada em Camarões — imagem que inspirou a capa do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Aurora Fornoni Bernardini, professora emérita de Língua e Literatura Russa da USP, afirmou em entrevista à Folha que a literatura contemporânea empobreceu ao privilegiar o conteúdo e esquecer a forma. Bernardini declarou que escritos que trocam significante por significado “podem até ser interessantes, mas não são literatura” e cita “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Jabuti, como exemplo.

A professora, que não hesita em afirmar que “o autor não tem estilo particular”, defende que a verdadeira literatura não se define apenas pelo que diz (significado), mas, sobretudo, por como diz (significante). É o estilo — a invenção da linguagem, a manipulação estética das palavras — que transforma um texto em literatura, e não o mero conteúdo. Na escrita literária, o significante corresponde à forma artística da escrita, ou seja, o trabalho com a linguagem, o ritmo, a sonoridade, as imagens, as ambiguidades e as estruturas narrativas. Já o significado está ligado ao conteúdo, ao tema tratado (amor, política, desigualdade, trauma etc.).

A professora critica uma tendência atual de valorizar textos que abordam temas relevantes (sociais, identitários ou políticos), mas que não inovam nem exploram esteticamente a linguagem. Isso significa que muitos escritores contemporâneos são elogiados pela crítica mais pelo que dizem sobre o mundo do que pela forma como escrevem.

Por isso, Bernardini afirma que esses textos “podem até ser interessantes, mas não são literatura”, pois, para ela, sem um trabalho artístico com o significante (a linguagem), o texto deixa de ser literário e se torna apenas discurso, relato, testemunho ou ensaio, mas não arte literária. A essência da literatura está na dimensão estética da linguagem, isto é, no significante e não apenas na força do conteúdo temático. Obras que priorizam o discurso ou a mensagem em detrimento da invenção formal empobrecem a experiência literária, pois reduzem o texto a um veículo de ideias e não a um objeto artístico autônomo; aquilo que, para a teoria literária do século XVIII, se reconhece como Alta Literatura.

A partir desse momento histórico, a literatura passou a ser compreendida como uma forma autônoma de arte verbal, distinta do discurso utilitário. Essa nova concepção estruturou-se em torno de princípios como a ficcionalidade, o estranhamento e a busca do belo, privilegiando o deleite estético e o caráter desinteressado da criação artística. Desse modo, o valor literário deixou de residir apenas no conteúdo moral ou didático das obras, passando a depender do efeito formal e sensível que produzem no leitor, o que consolidou a noção moderna de literatura.

Essa teoria estética também passou a distinguir a literatura de outros tipos de escrita, como textos científicos, religiosos ou jornalísticos. A Alta Literatura, então, seria compreendida como uma arte da linguagem voltada para o belo e para a emoção estética — critério que justifica, por exemplo, a classificação de “O Diário de Anne Frank” como literatura.

Assim, a produção moderna deveria se estreitar ao conceito de estranhamento (que mais tarde seria desenvolvido pelos formalistas russos), associando-se à capacidade da arte de causar surpresa, ruptura e afastamento do comum. A literatura deve transformar o cotidiano em algo novo, inesperado e poético, para que o leitor veja o mundo de outra forma. Ou seja, o texto literário não repete o real, mas o reinventa, gerando reflexão e deleite.

Apesar de “Torto Arado” não cumprir a fórmula ao pé da letra, nem seguir a maior parte dos critérios estabelecidos para ser considerado Alta Literatura, a obra de Itamar Vieira Junior alcança relevância literária por outros caminhos. Seu valor está na potência simbólica e na profundidade humana com que retrata a experiência coletiva do povo negro e rural do Brasil, articulando memória, ancestralidade e resistência. Assim, ainda que privilegie o conteúdo em detrimento de uma linguagem inovadora, “Torto Arado” ressignifica o papel da literatura contemporânea ao recolocar no centro da narrativa sujeitos historicamente marginalizados, ampliando o próprio conceito de literariedade no século XXI.