Will Assunção é especialista em comunicação e colunista do WA
O instante em que tudo se desvela
No instante em que pude me ver — de uma posição diacrônica — sendo trocado sem o menor embaraço por uma presença que julguei temporária, frívola e sem importância, nasceu em mim uma coragem silenciosa. Uma coragem que não grita, mas se infiltra como uma lâmina fina na carne do ego. Um impulso que me empurrou ao espelho e, diante dele, fez-me encarar a própria imagem deformada por anos de idealização. Foi o primeiro gesto de lucidez depois de tanto tempo de ilusão.
A força que emergiu desse choque foi a de quem resolve interrogar o sentido de todas as escolhas que me trouxeram até o abismo. E, de súbito, percebi: não era apenas Pedro — nome fictício, mas símbolo real — que eu precisava questionar, mas também as pessoas e os vínculos que me cercavam, os sustentáculos das minhas próprias verdades. O espelho partiu-se, e, nas rachaduras, enxerguei não apenas a fragilidade da imagem que eu construíra, mas também o reflexo estilhaçado da minha própria identidade.
O filósofo da suspeita
Quando decidi interpelar as personagens do meu tabuleiro existencial, percebi que precisaria assumir o papel de filósofo da suspeita. Não havia mais espaço para a ingenuidade: era preciso desconfiar até daquilo que me parecia mais autêntico. Pedro tornou-se o catalisador involuntário das minhas revisões internas. Ele me obrigou a (re)pensar crenças, convicções e, sobretudo, os sentimentos que eu nutria por ele — sentimentos que, por um instante, julguei serem recíprocos, mas que agora reconheço como projeções de uma vontade de completude.
Nossa relação se apoiava num platonismo discreto, envolto pelo signo do Ouroboros — o ciclo eterno que devora a própria cauda. Eu o venerava e, por venerá-lo, erguia-o num pedestal íntimo, alimentando vontades, servindo-lhe desejos, acreditando ver nele tudo o que eu buscava em um corpo de carne e osso. Mas a verdade é que o que eu amava não era Pedro, e sim o reflexo idealizado que projetei nele — uma miragem construída com fragmentos do que me faltava.
A dor do ideal
Assumir uma postura platônica foi o meu equívoco mais humano. Criei um simulacro de Pedro e tentei torná-lo palpável, como quem tenta aprisionar o vento entre os dedos. O resultado foi um sofrimento inevitável: a dor de confrontar o abismo entre o ideal e o real.
Nesse confronto, compreendi que a idealização é uma forma sutil de negação da vida. Eu me vi incapaz de ser feliz, pois havia recusado, sem perceber, o amor fati — essa aceitação radical do mundo como ele é, e não como eu gostaria que fosse. Somos criaturas que buscam o outro como se buscássemos um espelho para nossas carências, e, nesse movimento, acabamos nos perdendo nas fantasias que projetamos. Envolver-se é tocar o abismo; amar é, de algum modo, ferir-se de lucidez.
O eterno retorno
A desilusão revelou que eu estava preso ao eterno retorno do mesmo. Tudo o que vivo já se repetiu, e tudo o que se repetiu voltará a viver em mim. O Ouroboros não é metáfora — é destino, é o círculo vicioso das emoções humanas.
Nesse ciclo, percebi que evitava a verdade para proteger as minhas ilusões. Ao menor indício de que a essência de Pedro pudesse ruir, eu tentava controlar o tempo, as circunstâncias, o próprio enredo da vida — como se pudesse editar o destino. Era uma tentativa vã de domesticar o incontrolável, de impor ordem ao caos. E, quando finalmente reconheci o fracasso desse controle, compreendi que coragem é aceitar o colapso, é permitir que tudo desabe para que algo novo possa nascer do entulho.
A solidão e o tempo
Quando decidi ir adiante, em busca das respostas que me assombravam, tornei-me mais solitário. Nietzsche passou a ser meu único interlocutor possível. “Às vezes enxergo tão profundamente a vida que percebo estar só, tendo por companheiro apenas o tempo.” Essa solidão, antes temida, tornou-se o cenário natural da reflexão.
Na tentativa de compreender a condição humana — esse labirinto de afetos e projeções — tornei-me refém de mim mesmo. Descobri que a solidão é o preço da lucidez: quem vê demais afasta-se do convívio banal, e quem sente demais não cabe nas formas comuns do amor.
Entre o bem e o mal
Há um instante em que tudo se mistura: o bem e o mal, o prazer e a dor, o sagrado e o profano — pares que inventamos para tentar ordenar o caos. A vida, porém, não se deixa dividir: é simultânea, sobreposta, indivisível.
Compreendi, então, que a luta essencial é interna. Paixão e razão são gladiadores de mesma força, duelando num combate que jamais cessará. Talvez por isso seja tão difícil definir o que sinto por Pedro. Talvez ele tenha sido minha Lou Salomé, ou talvez apenas a sombra do ideal que nunca se encarna.
A personagem perpetuada como amigo íntimo e confidente, que sempre legou as pintas das costas com as quais eu traçava, em minha imaginação, uma constelação de desejos, sempre habitou o plano das minhas ideias, uma vez que eu o projetava como o idealizava, mas não como ele realmente foi, nem como é.
Amor fati
Depois de tudo, aceitei o amor fati. Já não me interessa quem Pedro é, nem o que pretende de mim. Eu o amo porque ele existe — e por existir me coloca em movimento. Se é sincero ou oportunista, pouco importa: ele é parte da minha experiência do presente, e isso basta. Amar é aceitar o destino sem pedir que ele se justifique, é abraçar o acaso como se fosse necessidade.
O egoísmo do amor
Nietzsche me desferiu um golpe visceral ao mostrar que meu amor, travestido de generosidade, era, no fundo, egoísmo. Amamos o desejo, não o desejado. O outro é apenas o espelho onde projetamos o que queremos sentir.
Todo amor é, em alguma medida, amor-próprio — e toda doação carrega em si uma sede de retorno. Quando ofereço a Pedro o melhor de mim, busco, em verdade, ser amado, reconhecido, exaltado. O altruísmo é apenas uma forma sofisticada de vaidade. Amar é querer possuir, é querer dominar, é transformar o outro em fonte da própria completude. E a hipocrisia, nesse contexto, é apenas o perfume que torna suportável o instinto.
O humano naturalizado
À medida que Pedro deixa o altar e perde o posto de soberano, eu o vejo — e me vejo — como seres humanos: frágeis, contraditórios, animais em essência. Nietzsche nos devolve essa natureza sem adornos: o homem como ele é, sem véus, sem promessas, sem ilusões.
E talvez seja essa a lição final do Ouroboros: reconhecer que toda dor é cíclica, que todo amor é reflexo, que toda verdade é transitória — e, ainda assim, escolher viver, amar e repetir. Pois, no fim, é no eterno retorno que o humano se revela: não como quem foge do abismo, mas como quem aprende a habitá-lo.
