Will Assunção é especialista em ensino de gramática e literatura e mestrando no ProfLetras na UESB
FreepikA proposta de modificar a língua portuguesa para incluir “pronomes e substantivos neutros” esbarra, a priori, em questões linguísticas. Isso porque a ideia de criar um “gênero neutro” para se referir a coletivos não faz muito sentido do ponto de vista da estrutura da língua, uma vez que o português já possui pronomes neutros.
Nos demonstrativos, por exemplo, encontramos iss[o], ist[o] e aquil[o] — todos pronomes neutros, ainda que terminem com a letra o. Nesse caso (e em qualquer outro semelhante), o o não indica desinência de gênero, pois não há desinência de masculino em português.
A falsa oposição entre “o” e “a”
A ideia de que a letra o representa o masculino e a letra a, o feminino, pode parecer evidente para quem desconhece a estrutura e a história da língua, mas trata-se de um equívoco linguístico.
Se aprofundarmos um pouco mais na filosofia da linguagem, veremos que masculino e feminino (na língua) são conceitos que se relacionam com o gênero da palavra e não necessariamente com o gênero biopsicossocial. A língua, portanto, possui marcas genéricas que indicam o gênero da palavra, não do referente.
A herança do latim e a complexidade do português
Para compreender o funcionamento do gênero na língua, é preciso voltar a sua formação histórica. O português é o resultado da evolução orgânica do latim vulgar, trazido por soldados romanos do Lácio (Itália) no século III a.C. Essa origem inspirou Olavo Bilac, poeta parnasiano, a chamar o português de “última flor do Lácio, inculta e bela”.
Ao longo dos séculos, a língua também foi influenciada por outros idiomas e traz um substrato céltico. Após a queda do Império Romano e as invasões germânicas, formou-se o galego-português, dialeto que se diferenciou das demais línguas ibéricas. O português moderno é, portanto, o resultado de acúmulos e transformações linguísticas — uma estrutura complexa e consolidada.
Modificar tal estrutura exigiria que gramáticos de toda a comunidade lusófona observassem o uso corrente da língua, isto é, o que já está consagrado entre os falantes. Só então, com base em deduções e observações, poderiam propor novas normas. (O último Acordo Ortográfico, de 2009, foi proposto em 1986 — um intervalo de mais de 20 anos até ser implementado.).
E os substantivos, como ficam?
Em termos práticos, podemos observar a neutralidade em alguns substantivos.
A palavra aluno é um substantivo biforme desinencial: precisa de uma desinência (um “pedacinho” da palavra) para marcar o gênero — alun[o] e alun[a]. Note-se que o o não é uma desinência de gênero. Logo, a forma aluno é neutra do ponto de vista morfológico. A verdadeira marcação de gênero é o a, que indica o feminino. Ratifica-se, então, que as únicas desinências de gênero possíveis são as femininas, já que não existe desinência de masculino em português.
Outros exemplos reforçam essa lógica:
Príncipe / princesa: o masculino (príncipe) é a forma neutra; o feminino exige marcação (-esa).
Saci: palavra de gênero masculino, mas que pode designar personagens de qualquer gênero.
Boi/vaca: substantivos heteronímicos que demonstram que as terminações não definem gênero.
Urubu: se adotássemos u como desinência neutra, o pobre urubu seria o maior prejudicado.
Há ainda os substantivos uniformes, divididos em três categorias:
Epicenos: jacaré, cobra: “a cobra macho” / “a cobra fêmea”;
Comuns de dois gêneros: motorista, estudante: o artigo define o gênero (o motorista / a motorista);
Sobrecomuns: garfo, por exemplo, é masculino, embora o objeto não tenha gênero.
Neutralidade de pronomes
“Ilu” em vez de “ele”?
A terminação e não indica neutralidade. O pronome ele é formalmente masculino, mas funciona como forma neutra em muitos contextos.
Assim, propor que e de amigue sirva como marca neutra carece de fundamento linguístico e não tem aplicabilidade normativa — ainda que possa aparecer em discursos publicitários ou militantes, nos quais o efeito desejado é mais ideológico do que gramatical.
Na língua portuguesa, o masculino gramatical tem função abrangente: é usado para designar grupos compostos por indivíduos de ambos os gêneros. É por isso que o quantificador todos pode incluir homens e mulheres. Sob esse prisma, a expressão todos e todas é redundante do ponto de vista estritamente gramatical.
a norma-padrão como código comum
Em meio a essa complexidade, é preciso reconhecer o papel da norma-padrão como instrumento de convergência comunicativa. Em um país com dimensões continentais como o Brasil, convivem dezenas de variantes regionais, socioletos, registros situacionais e influências culturais distintas. A norma-padrão não deve existir para impor um “correto”, mas para garantir que, apesar das diferenças, haja um código comum capaz de sustentar a circulação de informações em larga escala — na imprensa, no ensino, na administração pública, no meio jurídico e em qualquer instância que exija compreensão ampla e mútua.
A ausência de um padrão compartilhado fragmentaria a comunicação nacional, criando barreiras entre grupos sociais e regiões. A norma-padrão, portanto, funciona como eixo unificador, não como inimiga da diversidade linguística. Ela convive com as variantes locais e populares, mas oferece um ponto de interseção que permite que brasileiros de contextos muito distintos se compreendam.
Os desafios da neutralidade para a acessibilidadeOutro ponto frequentemente ignorado no debate sobre neutralidade é o impacto da proposta na comunicação com pessoas com deficiência, especialmente surdas, mudas e com dificuldades de leitura ou processamento linguístico. Muitos desses indivíduos dependem de estruturas gramaticais estáveis para construir compreensão, seja no português escrito, seja na Língua Brasileira de Sinais (Libras), que possui sua própria lógica morfossintática, distinta do português.
A introdução de grafias como amigx, amigue ou amig@ cria obstáculos reais à legibilidade, à leitura assistida, à vocalização por softwares e ao ensino da escrita para pessoas com deficiência cognitiva ou sensorial. Em leitores mecânicos, símbolos como @, x ou combinações não padrão podem tornar o texto ilegível. Até mesmo formas supostamente “facilitadas”, como o e neutro, alteram a previsibilidade fonética e morfológica do idioma, dificultando a alfabetização e o reconhecimento automático de palavras.
Em vez de promover inclusão, o excesso de marcas artificiais pode ampliar desigualdades comunicativas, excluindo justamente aqueles que dependem da estabilidade estrutural da língua para se comunicar com autonomia.
Discutir neutralidade de gênero na língua portuguesa exige mais do que slogans ou boas intenções: requer compreender a língua como um organismo histórico, estruturado e complexo, que não responde a intervenções imediatistas. A gramática não é inimiga da inclusão; ao contrário, é o que permite que pessoas de diferentes regiões, níveis de escolaridade e realidades socioculturais partilhem um mesmo código de comunicação. Em um país de tamanha diversidade linguística quanto o Brasil, qualquer mudança normativa precisa considerar o impacto sobre esse delicado equilíbrio.
A língua não pode ser inimiga da inclusão
A adoção indiscriminada de formas neutras improvisadas — muitas delas sem lastro fonético, morfológico ou histórico — pode resultar em ruídos comunicativos, prejuízos à acessibilidade e afastamento entre grupos sociais. Inclusão linguística não se constrói à revelia da inteligibilidade, mas por meio de políticas educacionais, reconhecimento das variantes legítimas e ampliação do acesso à leitura e à escrita.
Isso não significa negar a dimensão ideológica e afetiva da linguagem. A língua sempre foi espaço de disputa e reinvenção. Mas o desejo de transformação precisa dialogar com a estrutura do próprio sistema linguístico e com as condições materiais e cognitivas de seus falantes. Entre a rigidez normativa e o experimentalismo pouco refletido, existe um caminho de equilíbrio: compreender a língua em sua historicidade, respeitar seu funcionamento interno e, ao mesmo tempo, reconhecer que sua vitalidade depende do uso consciente, crítico e responsável de quem a fala.
Mudanças linguísticas duradouras não nascem de imposições, mas de consensos, muitas vezes lentos, porém sólidos, construídos no interior da própria comunidade de falantes. É somente a partir desse diálogo entre prática e reflexão que a língua pode continuar sendo, ao mesmo tempo, instrumento de comunicação, patrimônio cultural e espaço legítimo de construção de identidades.
tempo, tempo, mano velho
A incorporação de novas palavras ao português é um processo tão simples, mas gradual, condicionado a fatores socioculturais, demográficos e históricos. Uma palavra nova só se estabiliza quando passa a circular espontaneamente entre os falantes, atravessando diferentes contextos de uso, registros e grupos sociais. Em geral, isso exige tempo — às vezes décadas — para que a comunidade linguística valide a utilidade do termo, avalie sua sonoridade, sua compatibilidade morfológica e até sua necessidade real. Ainda que um neologismo nasça com grande apelo, ele só se fixará se encontrar aderência no uso cotidiano, o que críticos, gramáticos e lexicógrafos observam empiricamente antes de incorporá-lo aos dicionários ou à norma culta.
No caso do português, que é uma língua pluricêntrica e regulada por acordos internacionais, a estabilização de vocábulos ainda precisa atravessar outro filtro: o da circulação entre os países lusófonos. Um termo pode surgir em um deles e não ganhar força nos demais ou pode ser rejeitado por falta de clareza, tradição ou utilidade comunicativa.
Por isso, propor a adoção de novos vocábulos “neutros” não é apenas uma questão de vontade política ou de militância linguística; é propor uma mudança que depende da aceitação natural e majoritária dos falantes. Em síntese, a língua muda, mas não por decreto, mas muda porque as pessoas, ao longo do tempo, passam a usar uma forma de maneira tão consistente que ela se torna parte do sistema.
Só para se ter uma ideia, o Acordo Ortográfico foi assinado em 16 de dezembro de 1990. A previsão original era que ele entrasse em vigor em 1º de janeiro de 1994, mas isso só ocorreria depois da ratificação por todos os países signatários. Como nem todos ratificaram, foi assinado um 1º Protocolo Modificativo em 1998 para alterar a data de entrada em vigor. Em julho de 2004, foi assinado um 2º Protocolo Modificativo: esse protocolo mudou a regra para que bastassem três países para que o Acordo entrasse em vigor, não mais todos os signatários. Portugal ratificou esse 2º protocolo em 16 de maio de 2008.
No Brasil, o Acordo passou a valer oficialmente em 1º de janeiro de 2009, e o período de transição terminou somente no fim de 2015. Segundo o IILP, “foram necessários quase 25 anos para se chegar aos termos do Acordo” e outros ~25 anos para sua implantação completa. O processo levou décadas: do momento da assinatura (1990) até a ratificação, protocolos modificativos e implementação completa, foram cerca de 20 a 25 anos para uma adoção mais ampla.
Outra perspectiva: a língua como ato ideológico
Sob uma perspectiva discursiva, porém, optar por explicitar o masculino e o feminino é um ato de intervenção e uma manifestação ideológica. Nesse nível, a língua ultrapassa o campo da comunicação e se torna um instrumento político e social, capaz de refletir valores, crenças e disputas simbólicas. A língua, afinal, é viva e arbitrária — e o que se diz, como se diz e por que se diz são escolhas que revelam muito mais do que a gramática pode prever.