Muito além do fascínio pela carreira, curso de comissário de voo exige treinamento de sobrevivência na selva




Treinamento ocorreu em uma área de resquício de Mata Atlântica no estado de São Paulo ─ Foto: Will Assunção/WA

Quem já esteve a bordo de um avião comercial, operado por uma companhia aérea doméstica ou internacional, sabe muito bem que os comissários de voo são as pupilas e o principal cartão de visitas da empresa. Ainda com uma imagem romanesca, construída no início do século 20 e reforçada a partir da década de 1970, com a ascensão dos voos comerciais, de recém-contratados de agências de modelo e frequentadores assíduos de lojas de grife, o tripulante não técnico ainda faz parte de um imaginário muito distante da atual realidade. Os funcionários da linha de frente das companhias aéreas passam a maior parte do tempo de voo atendendo aos passageiros e são os responsáveis pela segurança a bordo.

Ser comissário vai muito além de servir refeições e de anunciar as instruções de segurança aos passageiros no momento da decolagem e da aterrissagem. Quem se depara com aqueles uniformes bem passados, broches reluzentes com o emblema da aviação civil e aparência impecável, nem imagina que, para ingressar na profissão — que, até pouco tempo atrás, era símbolo de elegância e glamour — é exigido um curso com duração média de até oito meses.

No curso, os futuros aeronautas adquirem conhecimentos que vão desde regras de etiqueta até navegação aérea e, principalmente, segurança. Também aprendem a lidar com diversos tipos de situações que podem ocorrer dentro de uma cabine pressurizada a mais de 35 mil pés, inclusive momentos imprevistos e de extremo perigo, como reações inesperadas dos passageiros e, especialmente, as trágicas.

A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), órgão regulador da atividade aérea civil no Brasil, exige dos cursos de comissário o treinamento de sobrevivência na selva, em que os alunos aprendem, entre tantas tarefas, a combater incêndios e aplicar técnicas de subsistência em condições adversas, inclusive em alto-mar, por motivos de segurança.



Treinamento ocorreu em uma área de resquício de Mata Atlântica no estado de São Paulo ─ Foto: Will Assunção/WA

Além de demonstrar controle emocional e empatia ao lidar com pessoas, é função do comissário dar assistência ao piloto (o comandante da aeronave, autoridade máxima durante o voo) e prestar socorro em situações de emergência. Por isso, o treinamento na selva é tão importante na formação de um comissário.

Outro estigma que precisa ser desconstruído é o de que apenas mulheres, especialmente as muito jovens e com medidas de modelo, exercem a função. As próprias companhias já deixaram claro que essas exigências ficaram no passado, quando a aviação civil comercial ainda engatinhava. Prova disso é que, atualmente, há comissárias acima dos 30 anos iniciando a carreira, como Renata Zampani, que descobriu seu sonho ao começar os estudos na escola. “Acabou se tornando um sonho com muita vontade de vencer”, disse.

Para os homens, a realidade não é muito diferente. Os tripulantes masculinos podem ultrapassar 1,84 metro, medida máxima indicada por alguns profissionais da área para exercer a profissão. Outra novidade é que os comissários do sexo masculino estão cada vez mais presentes nos aeroportos do Brasil. De acordo com o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA), os homens representam 40% dos 11 mil comissários de bordo do país.

Rumo à selva
Já se aproximava das 4h30 da madrugada de sexta-feira, 13 de maio de 2016, quando uma turma heterogênea de alunos, com idades entre 18 e 36 anos, se aglomerava em frente ao prédio da Escola de Aviação de Congonhas (Eacon), em Campo Belo, zona sul de São Paulo, para partir rumo ao litoral norte do estado. Lá, participariam de diversas provas confinados em uma área de resquício de Mata Atlântica, durante três dias, sem comunicação externa e sem o conforto de casa. Como repórter e aluno do curso de Comissário de Voo, participei para registrar os momentos mais marcantes da experiência.

A poucos minutos do amanhecer, vários grupos de alunos de diferentes turmas se formaram ao redor do ônibus que os levaria a Biritiba-Mirim, a aproximadamente 121 km da capital, onde daria início o treinamento. Já no destino, em um galpão, 37 futuros comissários se reuniram para receber o itinerário e as instruções das horas seguintes.

A primeira etapa do treinamento consistia no combate a incêndios. Em grupos de seis, os alunos precisavam atravessar um labirinto dentro da “casa da fumaça” e garantir a saída simultânea de todos, assegurando a integridade física da equipe. Além disso, aprendiam a manusear diferentes tipos de extintores.



Treinamento requer esforço físico e controle emocional ─ Foto: WA

Mesmo quando os participantes se arrastavam pelo piso da estrutura construída para simular uma situação de fogo, após um pouso de emergência, o ambiente se tornava extremamente difícil para respirar e se locomover. A área escura era tomada pela fumaça, comprometendo completamente a visão de quem estava dentro.

Se já não é simples para pessoas sem fobia a lugares fechados manter o controle emocional, a tarefa se mostrava muito mais desafiadora para os claustrofóbicos, que precisavam seguir adiante sem se apavorar ou pôr tudo a perder. Por isso, a interação entre os integrantes do grupo era fundamental. Muitas vezes, os participantes pensavam em desistir antes mesmo de avançar os primeiros cinco metros do labirinto montado para o treinamento.

O primeiro momento serviu para revelar a superação de Cadu Lima, de 29 anos, que, em 1997, aos 11, perdeu a irmã mais nova, de 9, em um incêndio que destruiu mais de 120 barracos na comunidade do Coque, no Recife (PE). Aluno da turma do extensivo, Cadu viveu um momento de superação pessoal ao conseguir relembrar o fato enquanto cumpria a prova. O trauma que antes o assombrava agora está superado. O sonho de se tornar comissário se confirmava naquele instante. “Eu vi a imagem da minha irmã na colega que estava ao meu lado”, contou.

Após todos saírem do labirinto com os olhos lacrimejando pela fumaça, enquanto alguns tossiam e reclamavam da dificuldade de respirar, o batismo dos participantes cobriu o gramado com o pó do extintor. Em seguida, todos juraram exercer a profissão com honra.

Antes de o almoço ser liberado — a última refeição em que poderiam comer sem restrições —, um instrutor repassou novos informes, como o recolhimento dos celulares. A notícia causou desconforto entre muitos, que souberam, a partir daquele instante, que não poderiam mais se comunicar ou acessar a internet. Nas horas seguintes, outro fator psicossomático influenciou a mudança brusca de comportamento do grupo: a privação regulada de alimentação e de sono.

Cada participante se viu obrigado a tomar, no café da manhã, um copo descartável de chá e sete bolachas de água e sal. Imagine o jantar. Servida no mesmo copo, uma sopa à base de batatas e cenouras, preparada pelos próprios alunos, era acompanhada, quando havia sorte, por uma fatia de pão e meio copo extra de sopa — se ainda restasse algo na panela recém-retirada da fogueira armada sob o barracão, onde todos faziam as refeições e se reuniam.

As baixas temperaturas também tornaram o confinamento no acampamento ainda mais severo. Durante a primeira tarde, os termômetros registraram 15 °C logo após o pôr do sol. No início da noite, a temperatura voltou a cair, o que fez muitos desistirem do banho. Assim como a maioria dos ocupantes da minha barraca, também me recusei. Imaginei que, naquele momento, a sensação térmica estivesse entre 11 °C e 12 °C. Era frio demais para me aventurar a mergulhar em uma nascente de água gelada no meio da Mata Atlântica.

Antônio Ferreira, enfermeiro que atuou na Floresta Amazônica por dois anos a serviço da Funai (Fundação Nacional do Índio), participou do treinamento como aluno e fazia parte da minha equipe. Ele não apenas teve coragem de se lançar na água gelada, como também foi um dos responsáveis por garantir a estrutura da barraca onde nosso grupo acampou. Algumas atividades, como as refeições, eram divididas por gênero — e, provavelmente por isso, o jantar quase foi perdido. Nenhum de nós, homens, sabia ao certo como descascar uma simples batata. Fomos salvos pelo veterano da Funai, que assumiu os preparativos do jantar e impediu que a sopa se transformasse em um caldo de verduras cortadas pela metade.



Treinamento ocorreu em uma área de resquício de Mata Atlântica no estado de São Paulo ─ Foto: Will Assunção/WA

Quem não possuía uma lanterna para iluminar um palmo à frente do próprio nariz ficava impossibilitado de se locomover pelo acampamento. O alojamento situava-se no meio de um terreno tomado pela mata, repleto de árvores de copas altas. Escurecia muito cedo, e a baixa temperatura só agravava o estresse de quem já se encontrava emocionalmente sobrecarregado. De forma disciplinar, uma contagem era realizada sempre que era necessário confirmar a presença de cada participante do treinamento de sobrevivência.

Se frio, sono e cansaço já eram fatores que deixavam todos irritados e sem paciência, a fome só piorava a situação. Em determinado momento, por três vezes consecutivas, um integrante do acampamento se perdeu na contagem, o que resultou na suspensão de uma das refeições diárias. Naquele instante, muitos aprenderam, de forma coercitiva, o valor de trabalhar em equipe e cooperar com o coletivo.

Formado por alunos de turmas distintas — homens e mulheres de diferentes idades —, o grupo incluía profissionais de áreas diversificadas, como educação, saúde, comunicação, gastronomia e administração, além de muitos jovens recém-formados no ensino médio que compartilhavam um objetivo comum: tornar-se comissários de voo.

Houve inclusive participantes que vieram de outros países apenas para realizar o curso. É o caso de Thayná Cajaiba, de 20 anos, que retornou ao Brasil após morar em Laval, capital do departamento de Mayenne, na região do Pays de la Loire, na França, somente para obter o reconhecimento da formação como comissária.

Diferente do Brasil, em outros países da Europa, onde Thayná pretende atuar, não é obrigatório realizar o curso de comissário antes de ingressar em uma companhia aérea. No entanto, ela explica que, ao constar no currículo um curso com algumas das mesmas diretrizes do treinamento, as chances de conquistar uma vaga em companhias internacionais aumentam consideravelmente.

Água gelada e muita coragem



Treinamento ocorreu em uma área de resquício de Mata Atlântica no estado de São Paulo ─ Foto: Will Assunção/WA

Talvez a marinharia tenha sido a parte que causou mais apreensão em alguns participantes, já que muitos não sabiam nadar e sentiam medo só de pensar em enfrentar a água escura e gelada no encontro do rio Guaratuba com o Oceano Atlântico. Mesmo com o uso de coletes resistentes a mais de cem quilos e a garantia de todos os procedimentos de segurança adotados pela equipe de instrutores, alguns alunos permaneceram receosos até serem obrigados a alcançar o bote, que ficava distante da margem, para completar a tarefa.

Apesar de trabalhoso e, às vezes, extremamente exaustivo, todo o aprendizado durante os três dias serviu não apenas para condicionar fisicamente os alunos, mas também para prepará-los psicologicamente a lidar com os mais variados tipos de pessoas e situações.

No acampamento, cercado por mata fechada e uma paisagem formada por morros, trilhas sinuosas e nascentes, era possível associar a visão do local a um cenário do longa épico de Steven Spielberg, Jurassic Park. O confinamento no espaço escolhido pela Eacon fazia parte de uma rotina planejada, pois sempre havia uma atividade a ser realizada pelo grupo de alunos da escola.

Ainda bocejando de sono e com a exaustão dominando nossos corpos, seguimos de um descampado para uma trilha fechada, com a finalidade de aprender a montar armadilhas para capturar animais silvestres. Afinal, nunca se sabe onde ou quando um avião poderá realizar um pouso de emergência — isto é, se ainda houver sobreviventes. Além disso, todos aprendemos o funcionamento dos sinalizadores, tanto para uso diurno quanto noturno.

Despedida
Depois de aproximadamente 48 horas em um alojamento em uma área ambiental protegida, que recebe diferentes alunos a cada nova turma formada para o treinamento de sobrevivência na selva, o estado físico e psicológico de todos já indicava comprometimento visível. Os participantes, que até então enfrentavam escassez de alimentos e isolamento, sem internet, água quente, energia elétrica ou outros confortos, foram informados sobre o término da formação.

Pode até parecer irônico, mas o aviso sobre o encerramento da capacitação trouxe uma sensação de saudade imediata e nos fez lembrar do momento em que percebemos que o último dia da faculdade havia chegado, e teríamos que nos despedir de uma rotina que já havíamos incorporado. Sabíamos que provavelmente não veríamos novamente aquelas pessoas com quem passamos tão pouco tempo, mas de forma tão intensa. Nessas 72 horas, aprendemos, por exemplo, como usar uma bússola na prática, quais passos podem salvar nossas vidas na natureza selvagem e quais atitudes devemos tomar em situações que podem se tornar um ensaio para momentos ainda mais difíceis.

O que parecia uma saudade antecipada tomou conta de muitos por tudo que desejávamos que chegasse logo ao fim: das noites frias em claro, encarando as chamas da fogueira, aos banhos gelados no escuro. Mesmo exaustos, ninguém conseguiu resistir aos comentários aleatórios, à noite na barraca, antes de cair no sono, sobre sexo e saudade do sabor de chocolate com caramelo. Afinal, éramos jovens sonhadores, entusiastas de uma nova etapa da vida, e tínhamos certeza de que, partindo de qualquer ponto do mundo, nos céus, ninguém jamais esqueceria como agir em uma selva após um imprevisto.