Jornalista resgata 200 anos de história do Brasil sob olhar antropológico para entender seu pai ─ Foto: Will Assunção/WA
A busca para entender o pai, um católico fundamentalista ultraconservador, ex-seminarista que mais tarde se casaria e teria nove filhos, é o ponto de partida da jornalista Helena Vieira para escrever uma autobiografia permeada de fatos históricos que moldaram o Brasil. Foram dez anos de pesquisa em documentos do Arquivo Público do Estado da Bahia, somados a relatos de moradores – alguns quase centenários – de cidades que guardam a memória viva de uma parte importante da história do país.
O trabalho resultou no livro que a autora lançou em 2023 pela Folhas de Relva Edições, disponível no site da editora e em diversas livrarias do Brasil. Em novembro, Helena participará da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro. No festival, essa história — “um livro que escrevi com o coração na mão e lágrimas nos olhos”, segundo a autora — terá a chance de alcançar novos públicos e revelar outros Brasis.
Formada em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, Helena Vieira morou em Salvador, São Paulo, Nova York, Buenos Aires, Roma e Arusha, na Tanzânia. Trabalhou nos jornais O Estado de S.Paulo e O Globo, na edição brasileira do The Wall Street Journal e na Bloomberg TV. Há dez anos reside em Londres, onde é editora do site LSE Business Review, da London School of Economics and Political Science.
Ao mesclar ensaio pessoal e relato jornalístico, Jussiape, a cidade onde nada acontecia percorre duzentos anos da história do Brasil, do século XIX ao XX, por meio da trajetória de seis gerações da família Vieira.
O título do livro talvez traga inquietações quanto ao sentido pretendido pela autora. No lançamento em Jussiape, Helena explicou ao WA que o nome usa a ironia como recurso — quase uma provocação — ao ecoar o que o pai costumava dizer sobre uma “cidade pacífica, tranquila”, onde “nada acontecia”. A capa, ilustrada por uma fotografia de Will Assunção, captura um dos muitos fins de tarde dessa cidade serena, que nunca teve pressa em contar o tempo.
Raimundo Magalhães Vieira, pai de Helena, era um homem de voz alta e peremptória, que impunha respeito e distância. “Quando eu tinha sete anos, por um motivo que só consegui vislumbrar quase quarenta anos depois, meu pai me deu uma surra de cinto que deixou hematomas nas pernas e um trauma difícil de superar”, recorda a autora.
Na narrativa, Helena assume várias personas: a filha que busca compreender o pai e a pesquisadora que se debruça sobre os antepassados da família. “Passei a primeira parte da minha vida acuada e planejando escapar. Bem mais tarde, ao escrever este livro, consegui resgatar o afeto que sempre senti por ele”, destacou. Sua investigação revela também o flagelo da escravidão negra no Brasil, presente no legado familiar — do uso de mão de obra escravizada nas fábricas do tataravô ao comércio de pessoas para fazendas de café no interior paulista.
Para acessar documentos do acervo público da Bahia, Helena contou com o apoio do historiador Urano Andrade e com a orientação do psicanalista Luis Tenorio Oliveira Lima, que a ajudou a ressignificar suas memórias.
Jornalista resgata 200 anos de história do Brasil sob olhar antropológico para entender seu pai ─ Foto: Will Assunção/WA
Amor, ódio e violência no alto sertão baiano
Nascido em Jussiape, uma pacata cidade da Chapada Diamantina, na Bahia, Raimundo era o caçula dos dez filhos de Solon, avô de Helena, que por sua vez nascera em Caetité — o mais importante centro urbano ao sul da Chapada. Foi nessa cidade que vieram ao mundo os antepassados da autora e onde a família Vieira protagonizou episódios marcados por disputas políticas e pela escravidão.
Os dois municípios do alto sertão baiano carregam em seu DNA a memória das guerras travadas entre colonizadores portugueses e povos indígenas, das secas e da escravidão, bem como do lento e árduo processo abolicionista. Essa trajetória atravessa também a Independência da Bahia, a Proclamação da República e os movimentos armados que marcaram o início do século XX, como o Cangaço e a Coluna Prestes.
O tataravô
Antônio Vieira da Costa, comerciante português natural da cidade do Porto, desembarcou no Brasil em 1º de dezembro de 1818, pelo Rio de Janeiro, declarando-se já residente na “Cidade da Bahia”. Entrara em falência após apostar toda a sua fortuna em um alvará concedido por D. João VI. Sua biografia é uma janela escancarada para eventos históricos de Portugal — como a atuação da Ordem de Cristo — e do Brasil, como o episódio conhecido como Mata-Marotos, a perseguição aos portugueses ocorrida após a Independência da Bahia, em 2 de julho de 1823.
Liberalismo político, monarquia e o comércio de escravos
Sabino, um dos filhos de Antônio Vieira da Costa, já nascido em Caetité, alcançou prestígio como tabelião do Império. Pai de muitos filhos e proprietário de pessoas escravizadas, enfrentou a fúria da elite local ao abandonar a esposa e constituir nova família. Um dos episódios mais sombrios revelados pela autora remete à cena inicial do filme Django Livre (2012), de Quentin Tarantino, em que pessoas negras são forçadas a caminhar acorrentadas sob o açoite de homens a cavalo.
Um documento de 19 de setembro de 1877, encontrado em cartório, comprova a crueldade do trisavô de Helena: uma mulher escravizada chamada Tereza, de 25 anos, foi obrigada a percorrer cerca de 1.300 quilômetros, a pé e acorrentada, da Bahia até São Paulo, onde seria vendida a produtores de café.
O bisavô de Helena, José Augusto — filho de Sabino —, apoiou políticos liberais e a monarquia, e soube explorar as brechas da Lei do Ventre Livre para continuar lucrando com a compra e venda de pessoas escravizadas. Já o avô da autora, Solon, filho de José, não obteve cargos públicos. Enfrentando o alcoolismo, mudou-se com a família de Caetité para Salvador, em uma jornada épica de quatro dias, feita em lombo de burro, trem e barco.
A jornalista e escritora Helena Vieira retratada pelo fotógrafo Renato Parada ─ Foto: Will Assunção/WA
Helena resgata Jussiape
A jornalista soteropolitana desembarcou em Jussiape, em 2010, movida pelo desejo de resgatar histórias que traduzem uma busca tanto antropológica quanto, muito provavelmente, psicanalítica — uma tentativa de compreender mais a fundo sua relação com o pai. Helena conta que escolheu o jornalismo sonhando em ser correspondente internacional e em percorrer o mundo narrando histórias.
Antes de se estabelecer em Londres, morou em Salvador, São Paulo, Nova York, Buenos Aires, Roma e Arusha, na Tanzânia. Foi repórter das TVs Aratu e Bahia, em Salvador, atuou na editoria de política de O Estado de S. Paulo, trabalhou como freelancer em Nova York para O Globo e a Rádio CBN, e integrou as equipes da edição brasileira do The Wall Street Journal e da Bloomberg TV Brasil. Por um ano, foi assessora de imprensa da School of St. Jude, uma ONG australiana com sede na Tanzânia. Há oito anos, é editora do LSE Business Review, da London School of Economics and Political Science, em Londres.
Helena já havia manifestado o desejo de pertencer a um lugar que não fosse a capital. “Na escola, eu tinha inveja das colegas nascidas no interior. Elas vinham de outro espaço, e eu só tinha Salvador na minha vida”, recorda. Treze anos após conhecer Jussiape pessoalmente e conviver com figuras centrais da cidade, a escritora confessou, em conversa com o repórter do WA: “Sim, Jussiape me deu pertencimento.”
Jussiape, a cidade onde nada acontecia
Autora: Helena Vieira
Edição: 1
Ano: 2023
Assunto: Literatura Nacional, Memórias, Não-ficção
Idioma: Português
País de Produção: Brasil
Peso: 0,280 kg
Nº de Páginas: 234
Capa e projeto gráfico: Osvaldo Piva
Editora: Folhas de Relva Edições
R$ 58,90
Vendas: pelo site da Editora Folhas de Relva


