O surfista Ygor Reis ─ Foto: Will Assunção/WA
Há preferência — minha, sua ou de um amigo — por pessoas de determinado estado do Brasil ao se relacionar? Seja como colega de trabalho, dupla na faculdade ou até mesmo para compartilhar planos para um casamento que dure décadas.
O carioca é mais legal que o paulistano? (Sabe aquela velha birra polêmica do “biscoito ou bolacha”?) Qual dos dois esbanja mais sensualidade: o baiano ou o fluminense? E os gaúchos? São mesmo os mais bonitos da nação? Ou seria o potiguar o povo mais encantador entre nós, brasileiros?
E se houvesse a chance de escolher a qual população brasileira pertencer? Você seria guiado por alguma predileção, inclinado a um prejulgamento? Mas, peraí! Seria mesmo preconceito dizer que sim?
Enquanto contava mentalmente as pintas quase imperceptíveis nas costas do meu amigo-irmão, reveladas pelo sol do verão de 2016, pensei que ele poderia se passar facilmente por um florianopolitano. Ou melhor, por um manezinho — termo usado para designar os nativos da Ilha de Florianópolis pelos próprios catarinenses.
Se não fosse pelo sopro de calor humano que o contorna — traço que, no meu imaginário, o distingue da maioria das pessoas desta região —, ele poderia ser confundido com alguém nascido em Santa Catarina. Essa seria uma generalização preconceituosa da minha parte?
Ygor Reis se comporta quase completamente como alguém da Ilha: entusiasta do skate e do surf, embora considere o futebol seu segundo esporte; mantém um gosto intenso por animais, especialmente cães, e seus estilos musicais são bastante característicos dos manezinhos, do rock ao reggae. Entretanto, há nele um toque de docilidade, típico de pessoas do Nordeste. Ygor é de Maceió, capital de Alagoas.
O surfista Ygor Reis ─ Foto: Will Assunção/WA
Não que as pessoas no sul não sejam amigáveis. Pelo contrário, elas são muito gentis e prestativas na medida do possível. No entanto, não dá para deixar de notar certas formalidades em momentos simples e, por mais que eles neguem, não é tão fácil fazer amizade por lá. Cá, no Nordeste, as cerimônias são facilmente dispensadas e substituídas por um dedo a mais de prosa, acompanhado de uma cervejinha, que logo evolui para um papo de caráter existencialista. Fazer amizade em Salvador, capital da Bahia, por exemplo, requer simplesmente simpatia e ocasião. O resto é por conta do baiano.
Salvador
Em 2010, quando eu não passava de um universitário recém-formado, comecei a buscar por um destino no mapa para começar de verdade uma nova vida. Levei em conta os tipos de pessoas que encontraria pela frente. Esse, por sinal, era o item que ocupava o posto prioritário da minha lista de pré-requisitos básicos para a escolha de uma cidade onde eu fosse, sei lá, viver. Como qualquer jovem de vinte e poucos anos com pouca ou quase nenhuma vivência de mundo, rotulava as pessoas pelo lugar onde viviam ou, talvez, o lugar pelas pessoas que lá viviam.
Naquele tempo surgiram, é claro, as opções de outros países. Quem nunca sonhou em morar em Nova York e andar pelo Central Park no outono? Ou experimentar a culinária de Paris? Desfrutar da brisa copiosa de sensualidade em Roma? Eu desejei viver todas essas cenas, mas, de qualquer forma, temos de convir que se mudar para outro país ou continente não seria lá coisa fácil para um estudante recém-formado. Pois, além de eu ter que dispor de alguma grana enquanto não me virasse sozinho por lá, eu precisaria ter planejado com certa antecedência esses novos passos. Contentei-me com o Brasil, o que, para mim, por enquanto, estava de bom tamanho. Eis o que me surgiu à mente:
Comecei por Salvador, capital com quase 3 milhões de habitantes, onde eu já havia vivido por aproximadamente cinco anos e mantinha uma relação de apego emocional, talvez pela simples razão de ter grandes amigos morando por lá e ter passado parte da minha adolescência — o que criou em mim memórias afetivas. Ainda assim, o que mais me encantava entre os soteropolitanos era o fato de serem acolhedores e esbanjarem felicidade. Apesar de todas as mazelas do cotidiano na cidade, era fácil ver o sorriso brotar no rosto de qualquer um que vivia na capital baiana.
O que, porventura, não me fez escolher a Cidade do Salvador, como originalmente foi batizada, para passar mais sequer um ano da minha vida, foi uma série de fatores que envolviam: a violência crescente, o desemprego, a pouca diversidade cultural, o alto custo de vida e a distância entre alguns amigos com quem eu mantinha aceso os mesmos planos de sair mundo afora.
O soteropolitano é o tempero agridoce no caldo de mistura cultural que forma o Brasil. Passa boa parte do seu tempo reclamando da vida que leva na cidade, mas sempre está envolto por uma magia estampada no rosto e no corpo. Vive atrás de um batuque para festejar qualquer acontecimento. É sempre muito solícito, mesmo quando não o quer ser. Se fosse para mensurar um sortilégio qualquer que o soteropolitano (ou o baiano) herdou de alguma entidade — talvez do candomblé — e mantém escondido no olhar, eu diria que é a sensualidade. A Roma Negra, como diria Caetano Veloso, possui uma aura mística, que interfere na libido de qualquer mortal.
Assim como em outras grandes cidades brasileiras, a diversidade de cores vista nas pessoas na capital é outro ponto fascinante. Salvador é a cidade fora do continente africano com o maior número de negros no mundo, mas há também brancos, ruivos e pardos, permitindo uma variedade de cores.
Considera-se alguém solitário? Na capital baiana, faz-se amigo muito facilmente, e é possível que você passe a frequentar a casa de alguém com quem possua afinidade nos dias seguintes. Por descuido do destino, a amizade poderá durar para a vida toda. Apesar disso, não é lá muito fácil encontrar quem possua gosto cultural, como diria o sociólogo francês Pierre Bourdieu, mesmo quando se trata de coisas simples, como música, esportes ou filmes.
Rio
Em seguida, veio o Rio de Janeiro, a cidade dos sonhos da minha adolescência (logo depois de Nova York). Lá pelos quatorze anos, quando eu ainda era um moleque de pele macia e esturricada pelo sol abrasador do verão de Salvador, sempre sonhava acordado com a Cidade Maravilhosa. Naquela época, todos os meus melhores amigos passavam o verão aproveitando o melhor da orla carioca: dias inteiros nas praias mais famosas e desejadas do Brasil, passeios de bicicleta pelo Recreio, caminhadas pela orla na zona sul do Rio e, já à tardezinha, uma volta pela Lagoa Rodrigo de Freitas.
A volta para casa era sempre extasiante. Ouvir bossa nova (graças às novelas de Manoel Carlos, sucesso no início dos anos 2000), aproveitando o ar-condicionado no calor infernal entre os prédios do Leblon, despertava em mim uma vontade incontrolável de viver no Rio.
Passaram-se os anos, eu cresci e me transformei. E ao que tudo indica, o Rio também seguiu o seu curso. Apesar de ainda continuar lindo e manter intocável o título de Cidade Maravilhosa, a violência havia crescido assustadoramente, roubando parte do charme que me atraía. Os primeiros anos da década de 2000 haviam ficado para trás. O terror estampado nas primeiras páginas dos jornais causava bastante medo a alguém que jamais se imaginou diante de um criminoso armado.
O carioca destila muita alegria e entusiasmo. Bonito e malandro por natureza (mais um estereótipo que precisa ser combatido?), é o tipo de gente que venera o pôr do sol. E isso não é mito. Além de estar sempre preocupado com o corpo, diversão no Rio é coisa levada a sério.
Mas não se engane com algumas peculiaridades dessa gente que fala encantadoramente estralando e chiando. Ao dizer para “aparecer lá em casa amanhã”, ele, na verdade, quis dizer: “foi bom ter compartilhado contigo este momento, até mais ou nunca mais”.
Pensei em falar com alguns amigos da época sobre a ideia, mas me lembrei de que nunca mais havia os visto ou sequer falado com qualquer um deles desde o verão de 2004. Então, parei por um instante e comecei a pensar em como eles seriam hoje, e como seriam as vidas deles. Estariam casados, solteiros, desempregados? Alguém havia morrido? É engraçado como a nossa vida é levada pelo destino. Todos aqueles antigos planos de verão agora não passavam de desejos cintilados por uma espécie de nostalgia, que vagavam na minha memória, ressuscitados, vez ou outra, quando eu ouvia alguma canção de João Gilberto na voz de Caetano Veloso.
Curitiba
Eu já alcançava os vinte e dois anos e não conseguia decidir em qual parte do país eu desejaria morar. Foi-se uma lista de possíveis lugares feita mentalmente nas semanas subsequentes, e então descobri Curitiba, que me parecia um bom lugar para ser descoberto por mim. A cidade é organizada, arborizada, segura e oferece uma das melhores mobilidades urbanas do país, ideal para quem precisa se locomover para trabalhar. Mas era muito distante do litoral e muito fria para alguém que venera o mar e o calor, sem contar a fama — acredito eu, injusta — de os curitibanos serem distantes e pouco amigáveis.
Descartei sem muito esforço a ideia de partir para Curitiba depois de ter contato com algumas pessoas que conheci no meu programa de intercâmbio para os EUA, o qual acabei nunca realizando, logo depois do terrorismo voltar a assombrar o planeta, em 2015. Não tenho a menor dúvida de que o curitibano seja uma gente com qualidades infinitas, mas completamente destoante do resto do país. Eles são únicos. E quando eu digo “único”, não é a mesma coisa quando eu digo que, como baiano, não existe nada igual. Eu quero dizer que não há indivíduos no Brasil que se assemelhem a eles.
Floripa
Acordei em um dia qualquer de dezembro e liguei a televisão, ainda meio desorientado, quando iniciava um programa sobre jovens brasileiros que se destacavam no surf, o Brasilam Storm, no Canal Off. Por algum motivo, fiquei jogado no sofá e acabei assistindo não apenas o primeiro episódio, mas também a temporada toda. O estilo aventureiro e jovem do canal havia me atraído, fazendo com que, nos próximos meses, eu passasse horas em frente à tela vendo surfistas, exploradores e outros esportistas optando por uma vida saudável no litoral.
Já no meio da estação, mais um programa de surf havia estreado. Desta vez, sobre um jovem de Maresias, em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, que se mantinha agarrado ao sonho de ser campeão mundial de surf. Medina havia se tornado meu atleta preferido em um momento em que eu buscava inspiração. Ele era simpático, jovem, cheio de vida e buscava seus sonhos por meio de grandes feitos no surf. Àquela altura da minha vida, eu já havia me tornado um entusiasta do esporte.
Eu me lembro de ter ouvido exatamente a canção que tocava quando meus olhos vislumbraram aquelas dunas brancas de areia fina e um azul que estampava um céu sem fim. A música era “Little Talks”, da banda Of Monsters and Men, e o lugar era a praia da Joaquina e do Campeche, em Florianópolis. A partir daquele momento, quase místico, a Ilha da Magia não saía mais da minha cabeça, e um desejo tomava conta de mim. Eu queria levar o estilo de vida de quem tem a praia por perto dos pés, da simplicidade que é andar de chinelo e bermuda pela cidade, do cheiro do verde do verão e viver num dos lugares mais fantásticos do país e do mundo.
Andar com gente com o mesmo gosto cultural, voltar a surfar, fotografar e me surpreender com a vida. Para completar, eu acabava de conhecer Ygor Reis, a quem eu mais tarde chamaria de Lôro e passaria a ser meu mais novo irmão — um cara vindo do Nordeste que tinha se estabelecido em Florianópolis. Todos os ventos sopravam a favor daquele pedaço de terra abençoado pelos pescadores. Ao aportar na Ilha, percebi que todas as maravilhas que eu havia imaginado eram reais.
Nutria em mim o anseio de ter contato com o manezinho o quanto antes e saber mais sobre aquela gente. Ygor já morava há algum tempo na Ilha e, por isso, já tinha feito alguns amigos por lá. Então, tudo fez com que ficasse mais fácil conhecer alguém que fosse nativo.
Mais impressões
Dias antes de pegar um voo para a Bahia, senti-me traído pelos meus próprios (pré)conceitos. Até então, havia formado ideias sobre as pessoas do país, mas ao me esbarrar na praia, na Ilha da Magia, com um paulistano, cheguei a confundi-lo com um florianopolitano. Um erro crasso vindo de quem sempre teve os estereótipos como veredito sobre as origens de qualquer um que cruzasse o caminho. Foi neste instante que desejei, se assim fosse possível, embutir os traços culturais com os quais eu mais me identificava em toda a população brasileira.
O surfista Ygor Reis ─ Foto: Will Assunção/WA
Ao retornar para a areia com o corpo aliviado do calor intenso que fazia naquele dia, sentei-me e pude ver que estava entre pessoas de diferentes lugares do Brasil, um país de território de extensões continentais. Eu apenas queria que a próxima pessoa que eu encontrasse tivesse um pouco do calor do baiano, da diversidade do paulistano, a elegância do gaúcho e a simplicidade e charme do manezinho. Eu já desconfiava categoricamente a quem pertencia o conjunto de traços culturais que eu buscava. O brasileiro estava a todo o tempo ao meu redor, um verdadeiro produto antropológico, resultado da mistura cultural que é a nossa gente.
Por que a Pauliceia nunca apareceu como opção?
A gigante arrogante brasileira nunca entrou em meus planos. E isso, talvez, seja culpa dos estereótipos que cada cidade carrega. É bem possível que eu tenha trazido comigo uma imagem equivocada da, talvez, maior cidade da América Latina. Esse retrato tapeado — como o de uma das cidades mais violentas do país, marcado pela impossibilidade de ser feliz devido à dureza do cotidiano e à liquidez que a velocidade e a falta de tempo causam na vida na megalópole — não reflete a realidade completa.
Cresci enxergando a cidade como um destino apenas para quem não tem outra opção. Já cheguei a ouvir muita gente dizendo que lá é “lugar onde o filho chora e a mãe não vê”. No entanto, o que eu mais tenho visto é que São Paulo é o “lugar onde o filho apronta e a mãe nem sonha”. O mais curioso é que quem teve a pretensão de espalhar essa falsa estampa fez questão de omitir todo o resto que nos faz amar verdadeiramente São Paulo.
Ninguém que escracha a Pauliceia diz sobre as noites maravilhosas e inspiradoras, que nos salvam da existência exaurida, a diversidade étnica e cultural, a abundância gastronômica, os parques, a mobilidade urbana (que gente como nós, de outros lugares, não vê com tanta crítica quanto os nativos enxergam o metrô e as linhas regulares de ônibus), as tantas e tantas opções de entretenimento e arte, e o poder de se libertar, de ser quem você realmente é.
O paulistano é, em essência, meio brasileiro como um todo. Por aqui tem de tudo. Quando penso que falo com alguém que nasceu em São Paulo e tem pais nascidos na capital, deparo-me com gente de todos os lugares do Brasil e até de diferentes partes do mundo. Eles são uma mistura heterogênea de baiano e carioca, gaúcho e mineiro. É o verdadeiro caldo cultural, como o escritor João Ubaldo Ribeiro bem definiu o povo brasileiro. Por ironia do destino, a única cidade que não listei como opção se tornou a minha escolha por algum tempo.
