Atentado de 24 de novembro produziu vítimas invisíveis




Mulher chora pelas vítimas do atentado ─ Foto: Will Assunção/WA

Em 2012, mergulhei no turbilhão dos eventos midiáticos, políticos e sociais que sucederam o atentado de 24 de novembro, em Jussiape, na Chapada Diamantina. Não foi uma imersão meramente jornalística — foi também pessoal. Naquele momento, eu havia sido assessor de imprensa do então prefeito Procópio Alencar, uma das vítimas fatais do episódio. Testemunhar de perto a tragédia e, anos depois, tentar compreendê-la de forma analítica, foi um exercício que me expôs às zonas mais cinzentas entre a dor, a responsabilidade e o silêncio coletivo que se instala após um trauma.

Ao escrever um artigo científico sobre o caso, descobri que o atentado não apenas ceifou vidas — ele produziu o que chamei de “vítimas invisíveis”. As maiores vítimas, evidentemente, foram aquelas que perderam suas vidas e seus entes queridos. Mas, contra o senso comum, é preciso incluir também os filhos do atirador. Carregar o peso simbólico de um crime dessa magnitude é uma forma silenciosa de punição social, difícil de mensurar e impossível de esquecer. E há ainda uma vítima coletiva: a comunidade de Jussiape, que até hoje carrega o trauma inscrito em sua memória recente, marcada por estigmas e cicatrizes que o tempo ainda não cicatrizou por completo.

O atentado foi um divisor de águas. Mas a maneira como foi narrado — e, em muitos casos, silenciado — moldou o modo como o município passou a se enxergar. O episódio permanece envolto por uma névoa de emoção que dificulta a compreensão racional do ocorrido. A emoção, embora humana e compreensível, nublou a possibilidade de se enxergar nuances, de compreender os mecanismos sociais, políticos e psicológicos que culminaram naquela manhã fatídica. Há evidências e motivações ainda enterradas, soterradas não só pela dor, mas pela cristalização da história ─ quando uma narrativa se torna tão repetida que passa a parecer definitiva.

Na época, a imprensa local — e parte da regional — realizou uma cobertura inicialmente sensata, sem ceder de imediato ao sensacionalismo que costuma acompanhar tragédias. No entanto, faltou aprofundamento. O jornalismo não chegou a explorar devidamente o perfil dos envolvidos, nem as tensões pré-existentes que fermentaram o desastre. Claudionor Galvão, o atirador, foi retratado como uma espécie de vítima-algoz: um homem frustrado, supostamente humilhado após a derrota eleitoral, que reagiu com fúria. Esse enquadramento simplificou o enredo e empobreceu o debate. Ao reduzir um evento complexo a um duelo entre vencedores e vencidos, a imprensa, talvez sem perceber, perpetuou a polarização que o próprio atentado simbolizava.

Anos depois, percebo que as feridas de Jussiape não se limitam às perdas humanas. Elas se manifestam nas conversas sussurradas, nas hesitações em relembrar, no desconforto coletivo diante do passado. O que não se narra, não se elabora — e o que não se elabora, repete-se de outros modos. Revisitar o atentado, com a distância que o tempo permite, é também uma tentativa de enxergar as camadas que a emoção encobriu. É reconhecer que, por trás das manchetes, há vidas que seguiram — algumas marcadas para sempre, outras tentando, em silêncio, aprender a conviver com o que jamais deveria ter acontecido.