Possível falha na rede de telefonia possibilitou escutas que comprometerem a privacidade de usuários ─ Foto: Will Assunção/WA
No início, era apenas um rádio. O ano era 2003 e, embora não houvesse consenso sobre o que estava acontecendo naquele momento em diferentes cidades do interior da Bahia, o fenômeno assumia o status de uma realidade paralela.
Muita gente conseguia, sem quase nenhum esforço, escutar conversas telefônicas apenas ligando o rádio e sintonizando o aparelho em alguma estação que cruzava o sinal com a rede de telefonia. O resultado era um cardápio — ou melhor, um banquete — de diálogos variados oferecidos ao ouvinte. Captava-se de tudo: brigas entre familiares, confidências sobre traição, romances secretos e resenhas do cotidiano que arrancavam gargalhadas de quem ouvia.
Há vinte anos, quando o acesso à internet banda larga ainda era restrito às grandes cidades, as pessoas tinham mais tempo livre em suas rotinas, inclusive para matar o tempo. Não havia urgência em responder mensagens no WhatsApp nem necessidade existencial de conferir e alimentar as redes sociais.
A escuta às escondidas era o motivo para as televisões serem desligadas e o silêncio quase absoluto se instaurar pelas casas da cidade afora. Até onde se sabe (lá vai a piada!), o ex-agente da CIA e da NSA, Edward Snowden, ainda não havia revelado nada semelhante sobre essa brecha para a espionagem, que já ganhava, naquele momento, ares de teoria da conspiração.
O vencedor do Prêmio Sakharov, oferecido pelo Parlamento Europeu na categoria Liberdade de Pensamento e asilado político na Rússia, tornou-se o rosto mais conhecido do mundo após abandonar suas funções de espião do governo americano e repassar ao repórter Glenn Greenwald, do jornal The Guardian, cópias de arquivos sigilosos da CIA e da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA).
Apesar de o tema abordado nesta reportagem apresentar uma distante semelhança — já que o corajoso agente revelou como a inteligência americana monitora cidadãos e governantes de diversos países, incluindo o Brasil —, no caso ocorrido na Bahia, era a própria população quem monitorava os cidadãos.
Acredita-se que a falha na telecomunicação tenha sido temporária, durando pouco mais de doze meses. Nesse meio tempo, mais de 137 conversas foram ouvidas, todas captadas por meio de simples aparelhos de rádio. Ouvia-se de tudo, contou um dos “espiões radiofônicos”. Houve relatos de casos amorosos entre apaixonados que marcavam encontros ao som de sussurros erotizados, além de muitos romances extraconjugais. Pular a cerca sempre foi um costume mantido pela humanidade no Ocidente. Brigas entre namorados eram comuns, sem mencionar os palavrões e xingamentos que dominavam os diálogos grampeados.
Na época, tentou-se descobrir o que estava acontecendo nas redes da região, mas as respostas das empresas de telefonia foram evasivas — algumas, inclusive, garantiam que aquilo era “praticamente impossível”. “Deve ter acontecido uma ou outra vez, mas não tem como se repetir inúmeras vezes”, disse um funcionário a um dos ouvintes que levava a mixórdia tecnológica como passatempo.
Os protagonistas e demais envolvidos nas conversas foram discretos, embora houvesse muita conversa fiada que servia de prova de que muita gente era apegada ao telefone, lembra um ouvinte que dedicava tardes inteiras ao novo ofício. Um dos espiões radiofônicos destacou que o número de pessoas que não se desgrudava do aparelho para conversar com parentes de fora, especialmente os que moravam em São Paulo, era absurdo, como revelaram os muitos registros feitos pelo rádio.
A prática de bisbilhotar conversas alheias se tornou tão popular em algumas cidades da Bahia que muitos jovens se reuniam apenas para comentar as últimas escutas. Logo depois, as pessoas do outro lado — as vítimas da interceptação — sentiram-se expostas e, de certa forma, grampeadas, ainda que por uma falha técnica, ao perceberem que sua privacidade havia sido violada. E com razão.
Enfurecidas, muitas delas fizeram alvoroço e até ameaçaram alguns espiões de plantão, mas nada adiantou. Só depois de meses de escutas o erro no sistema de telecomunicação foi reparado, e o “programa” transmitido pelo rádio — talvez o de maior audiência já registrado naquelas cidades — chegou ao fim.
Devido a essas falhas — e aos espiões que alardearam o fato —, a população percebeu o quanto a privacidade era vulnerável. Até então, esse assunto era tema restrito às mesas de cineastas e às reuniões de governo. O espião aposentado, com o fim das escutas, recebeu a reportagem vestindo camisa de colarinho discreta, bermuda e chinelos. A figura faz jus ao apelido que ganhou: Snowden.
Um dos principais personagens da trama afirma que, caso o episódio volte a se repetir, estará pronto para retomar o antigo posto esquecido. Para o observador secreto, foi realmente inesperado acordar e descobrir que podia ouvir segredos confidenciados a alguém do outro lado da linha.
