
O ex-vereador Adson Muniz ─ Editoria de Arte WA
Há figuras públicas que, mais do que encarnar o poder, o revelam — e talvez o exponham em sua nudez mais crua. Adson Muniz, ex-vereador condenado por estupro e roubo, é uma dessas figuras. Seu caso, que mistura carisma político, violência e ambição desmedida, lança luz sobre uma questão essencial: o poder não é apenas o que se exerce; é o que nos constitui. Michel Foucault, ao dissecar as engrenagens do poder, jamais imaginaria encontrar em um pequeno município baiano um caso tão vívido daquilo que chamou de “microfísica das relações de poder”.
Em Vigiar e Punir, Foucault rompeu com a visão clássica de poder como algo centralizado, algo que o soberano possui e exerce sobre os súditos. Para ele, o poder é uma rede — invisível, fluida, cotidiana — que atravessa corpos, gestos, discursos. Ele não é detido por ninguém, mas circula, infiltra-se, multiplica-se. É nesse campo de forças que Adson Muniz se movimenta: não como um homem que detém poder, mas como um sujeito moldado e impulsionado por ele.
Muniz projetava-se como político, empresário e, sobretudo, como símbolo. Postava fotos ao lado de carros importados, viajava a Mônaco, à final da NBA, e anunciava: “Adson Presidente: o Brasil em primeiro lugar!”. O exibicionismo não era mero narcisismo — era uma forma de performar o poder, de construir um discurso visual que o legitimasse diante de si mesmo e de um público sedento por figuras de autoridade. Em termos foucaultianos, tratava-se da fabricação de uma “verdade social”: um sujeito digno de obediência porque parecia já ser obedecido.
Foucault advertiu que o poder não é apenas repressivo; é produtivo. Ele cria realidades, produz saberes, institui normalidades. Ao se apresentar como homem de sucesso, defensor da ordem e inimigo da corrupção, Muniz não apenas mascarava seus crimes: ele se tornava produto de uma racionalidade política e moral que premia a aparência da força e pune a fragilidade. Seu discurso sobre “acabar com as mortes e a corrupção” não era uma contradição em si, mas parte do mesmo sistema que torna possível — e até natural — o autoritarismo.
O caso de Muniz evidencia a natureza capilar do poder. Ele não precisava estar na presidência para exercê-lo; bastava-lhe o corpo, a voz, a aparência. Quando ameaçava mulheres com uma arma falsa e um distintivo, simulando ser policial federal, ele mobilizava não apenas o medo, mas o imaginário disciplinar que Foucault descreve tão bem: a autoridade incorporada, o olhar vigilante do Estado condensado na figura de um homem comum. O corpo de Muniz tornava-se extensão do dispositivo policial.
Essa é a genialidade e o perigo das sociedades disciplinares: o poder não precisa mais estar nas instituições, porque os indivíduos o internalizaram. Muniz não representava o Estado — ele era o Estado em miniatura. Reproduzia seus gestos, suas punições, sua estética. E quando dizia ser “amigo de Marcola”, líder do PCC, evocava outro tipo de poder: o poder subterrâneo, extralegal, mas igualmente disciplinar. Em ambas as esferas, o que conta é a capacidade de fazer o outro se curvar.
A sociedade que o consagrou, mesmo que por um breve mandato, participa dessa engrenagem. Foucault diria que não há vítimas puras nas relações de poder — todos participam, ainda que de modos distintos, da manutenção das hierarquias e das ficções que as sustentam. Ao elegê-lo, a comunidade legitimou um discurso de autoridade masculina, viril e punitiva. A política local tornou-se um laboratório de biopoder, no qual a vida e o corpo dos outros — especialmente das mulheres — tornaram-se objetos de controle e violência.
O biopoder, conceito-chave em Foucault, refere-se ao modo como o poder moderno se exerce sobre a vida: administrando-a, regulando-a, otimizando-a. No caso de Muniz, vemos um desdobramento perverso dessa lógica. Ele não apenas disciplinava corpos — ele os violentava. Seu controle não se limitava à obediência, mas à posse. E é justamente nesse ponto que o poder foucaultiano revela sua face mais sombria: a de um poder que não precisa matar para dominar, mas que, em última instância, pode fazê-lo.
Muniz encarna o tipo de sujeito que o poder moderno fabrica: competitivo, ambicioso, performático, moralista e profundamente dependente do olhar alheio. Sua ascensão e queda são produto da mesma racionalidade que ele dizia combater. Foucault observaria aqui a ironia histórica de uma sociedade que condena o excesso individual, mas o alimenta estruturalmente. Cada curtida, cada voto, cada aplauso a um discurso autoritário é uma partícula dessa rede de poder em movimento.
O caso ainda em curso na Justiça brasileira não é apenas sobre crimes sexuais ou sobre corrupção moral. É sobre o modo como o poder se encarna em figuras cotidianas, produzindo sujeitos que acreditam ser exceções, quando na verdade são sintomas. Muniz não é o desvio — é o espelho.
Foucault insistia que onde há poder, há resistência. As vítimas que denunciaram Muniz encarnam essa resistência silenciosa, essa micropolítica da coragem. Elas não desafiaram apenas um homem, mas toda uma estrutura de dominação sustentada por discursos de autoridade, masculinidade e impunidade. Seu gesto rompe, ainda que brevemente, o circuito da obediência que mantém a engrenagem social funcionando.
O que esse caso revela, portanto, é que o poder não precisa de palácios. Ele opera em quartos de hotel, nas telas de celulares, nas conversas de bar, nos algoritmos das redes sociais. Muniz, com suas viagens e selfies luxuosas, compreendia intuitivamente essa nova topografia do poder: a visibilidade como capital político e moral. Foucault, se vivo fosse, talvez visse nas redes sociais o prolongamento do panóptico — um lugar onde todos vigiam e são vigiados.
Há uma ironia trágica em tudo isso. O homem que dizia querer “acabar com a corrupção e as mortes no país” acabou condenado por crimes que revelam justamente a corrupção da alma e a morte simbólica do outro. Mas seria fácil demais reduzi-lo a um vilão. Foucault nos ensinou a desconfiar das narrativas simples. Muniz é também o produto de um regime de verdade que o precede — um sistema político, midiático e cultural que fabrica monstros enquanto aplaude a máscara da autoridade.
O poder, afinal, não é o que se vê — é o que faz ver. E enquanto a sociedade continuar fascinada por figuras que exibem o poder como espetáculo, continuará alimentando as mesmas estruturas que a oprimem. Muniz é apenas um nome, uma expressão de algo mais profundo e difuso: a necessidade coletiva de acreditar que alguém tem o controle.
A lição foucaultiana permanece: o poder não está em lugar algum, porque está em todos os lugares. Ele se inscreve nos corpos, circula nas palavras, se atualiza nas telas. O caso de Adson Muniz é menos sobre um homem e mais sobre um espelho — o reflexo de uma sociedade que aprendeu a amar o poder, mesmo quando ele a fere.