Casamento na roça e as vagas lembranças literárias de Macondo

Pequena capela na Cachoeira, comunidade rural de Jussiape, na Bahia ─ Foto: Will Assunção/WA

Elaine Carvalho Rodrigues, de 20 anos, estudante de administração e funcionária da Secretaria de Assistência Social, e Alonso Muniz Carvalho, de 31 anos, biólogo e coordenador da Vigilância Epidemiológica, conheceram-se na Cachoeira, comunidade rural de Jussiape — município que soma, aos dois, outros sete mil habitantes na região do extremo sul da Chapada Diamantina, na Bahia.

Alonso conheceu Elaine quando deixava a sede de Jussiape para frequentar a Cachoeira, povoado dela, em noites de uma época em que uma única boate conseguia reunir gente de todos os lugares. Namoraram por quase três anos, até decidirem que já estava na hora de conjugar os votos matrimoniais.

Nesta história não existem delongas. Foi escrita com a simplicidade do destino e, nesse quesito, pode ser traçado um paralelo com as conhecidas memórias de José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán, personagens icônicos da literatura da América Latina. De certa forma, eles já predestinavam a roça como o cenário em que viriam a se casar. Por mais cômoda que fosse a vida na sede do município, seguir as tradições da família da noiva — que pertencia àquela comunidade — era algo que havia de ser cumprido.

Escolher um lugar ideal, dentro de todas as possibilidades existentes naquele momento para casarem, não foi motivo de desgaste para os noivos nem para suas famílias. O casal decidiu seguir o mesmo destino, com tranquila aceitação, da mesma forma como sucedeu com todos os Buendía, que se casaram há mais de um século em Cem Anos de Solidão, um dos mais glorificados romances do escritor colombiano Gabriel García Márquez.

Noiva de primeira viagem, Elaine Rodrigues não se importou nem um pouco com a escolha do lugar, deixando essa decisão a cargo de seus pais — sobretudo de sua mãe, Maria Carvalho Rodrigues. A jovem noiva tinha em mente que jamais se casaria. Ainda mais por se tratar de alguém por quem, no início, nunca nutriu admiração, quando o esperado é sentir amor à primeira vista. Seu noivo, até então, era visto por ela como alguém que prezava por “noitadas”, pelas farras sem hora para terminar — um jovem ainda imaturo que não havia alcançado a sobriedade da vida.

A sábia decisão de se casar em um lugarejo distante do resto do mundo, abençoado por Santo Antônio, padroeiro da pequena comunidade, se provava nas belas paisagens daquele canto. Os campos verdes que se espalhavam entre tantos morros, o ar puro que invadia os pulmões de uma povoação singela, além do calor da receptividade entre vizinhos que se confundiam com parentes espalhados por ali, eram as últimas evidências de que aquele era o lugar perfeito para um casamento que deveria seguir as tradições antigas.

O povoado ofereceu o conforto necessário para que prevalecessem as tradições familiares, permitindo que o matrimônio fosse realizado em uma diminuta capela ainda inacabada, no centro daquela localidade. Apesar dos poucos recursos disponíveis, os noivos utilizaram a própria criatividade e contaram com a ajuda de todos os que conheciam. Talvez esse tenha sido o segredo para que o enlace se transformasse em um evento que marcaria suas vidas como um dia repleto de alegria e abundância.

Casamento é sempre um acontecimento muito particular. É o instante em que toda a família se reúne, parentes e amigos se reencontram depois de muitos anos, e todos celebram o amor. A euforia contagiante de toda a comunidade presente na celebração, os detalhes e a irreverência dos convidados traduziram a dedicação empenhada para que a união se realizasse de forma harmoniosa, como prevista durante o planejamento. Nunca é demais celebrar o amor.

A história do casal

Elaine nunca sonhou em se casar. Ela só esteve certa de que o casamento seria bem-vindo à sua vida após a entrevista com o padre. Mas, no fim, seu coração já havia se rendido a alguém avistado em um domingo corriqueiro no seu povoado. Ela nunca idealizou um príncipe encantado com o estereótipo europeu, montado em um cavalo branco. Pelo contrário, sempre desejou que a pessoa com quem dividiria o resto da vida fosse demasiadamente humana, como no mundo sensível da vida real.

Ao estourar a greve da Polícia Militar, em 2012, ela pensou que poderiam se casar logo. Elaine explica que, devido à crise na segurança pública instalada na Bahia, os dois passaram mais tempo juntos depois de ter adiado sua ida a Vitória da Conquista para estudar.

Alguns anos de namoro foram suficientes para que construíssem planos. Um deles era morar na sede do município e, para isso, ela deixaria a Cachoeira e se mudaria para a casa do agora esposo, com a certeza de que estavam no melhor caminho. Estavam tão convictos que já começaram a construir um sobrado no fundo da casa do noivo, onde, a partir de então, passariam a viver juntos, dividindo seus próprios dias.

Macondo, então, apresentava-se como uma dimensão dividida entre Jussiape e Cachoeira. O relato do casal se confundia, em muitos aspectos, com o dos dois lugares — e com o da família, que sofrera uma solidão secular. Mas, até então, não havia tristeza nessa história, apenas alegria. Uma alegria que ainda podia ser contada em dias, pois era o começo de uma vida e, em breve, de outras vidas que, muito provavelmente, estariam por vir.

“Sabe essas questões, como vaidade, amigos? Eu não quero que mudem. Mas, em contrapartida, com o casamento eu tenho em quem pensar. No sentido de ‘vou viajar’. É como se eu devesse satisfação, mas sem a obrigação de dar satisfação. É como as pessoas dizem: ‘eu tenho a outra metade da laranja’. Eu sou muito família, adoro família grande. Pretendo ter um filho em breve, talvez mais um dentro de dois anos”, conta Elaine.

O cortejo do noivo

Antes de qualquer coisa, é bom dizer o quanto ventou naquela noite festiva de dezembro de 2014 e como o céu foi varrido pelas forças da natureza. Havia nuvens tímidas que tentavam encobrir uma lua clara e pretensiosa. Era uma noite típica da Cachoeira — uma noite como qualquer outra, se não fosse pela euforia que tomava conta de todos os homens daquele lugarejo.

Pouco antes de Elaine e Alonso subirem ao altar de uma simples capela, desprovida de grandes ornamentos, um cortejo formado, em sua maioria, por homens que tocavam sanfona, violão, pandeiro, triângulo, tambor e, ainda, por alguns que se arriscavam com as próprias gargantas em canções antigas e outras desconhecidas, seguiu o desfecho místico. Era uma espécie de procissão — um ritual matrimonial — que levaria o noivo até a entrada do prédio onde se casariam.

Nos rostos dos homens, uma satisfação fraternal estampava o que podia ser visto naquele momento único, mostrando como as relações eram estreitas em boa parte daquele recanto. A sonoridade podia ser ouvida de longe, tanto que alguns convidados, vindos de outras partes, admiraram-se ao conhecer a novidade ritualística. Por Melquíades, personagem único na história de García Márquez, procurei — mas não houve nenhum sinal de alguém que, de longe, se encaixasse em sua descrição. É difícil, em tempos como os de hoje, encontrar figuras como aquela de anos passados. A alquimia se tornou uma matéria perdida no esquecimento de quase todos.

A cerimônia

Saída da noiva da capela ─ Foto Will Assunção/WA

Noiva tradicional, Elaine escolheu a única capelinha que existia por ali, a poucos metros da casa de seus pais, na beira da estrada de terra batida. O espaço foi todo preenchido por convidados. Foram tantos os que compareceram que parte deles ficou do lado de fora, onde cadeiras foram postas para acomodar aqueles que chegavam para assistir à cerimônia.

Quando as pequenas portas de madeira se abriram, revelando um salão decorado com minúsculos quadros em alto-relevo com passagens bíblicas da vida de Jesus, todos se apressaram para adentrar a capela, ansiosos por assegurar um lugar confortável de onde pudessem assistir à cerimônia. Parte da família já aguardava do lado de fora para entrar, levando os noivos até o padre, local onde, em instantes, cumpririam seus destinos e veriam suas vidas entrelaçadas.

Enfeitada de flores que pareciam ter sido colhidas naquele pedaço de terra, as cores espalhadas pelo ambiente encontravam perfeita harmonia com as imagens suspensas no altar. O azul celeste, tingido nas bases da capela, reproduzia o espírito de tranquilidade conquistado pelos moradores daquele povoado. Depois de todo o protocolo religioso, arranjado sob aquele teto, a noiva entrou vestida de branco, representando a pureza tradicional do Cristianismo. Um longo vestido se arrastava pela capela, revelando um rosto primaveril e emocionado. A cerimônia seguiu como planejada, com a presença da família dos noivos, formando uma visão diversificada de todo tipo de gente.

A festa

A festa foi feita no terreiro. Mesmo sem direito a um céu estrelado, as nuvens eram escassas e dissipadas. Mas a lua veio, clandestina e majestosa, acompanhar aquela gente que tinha alegria nos olhos e muita vontade de viver. Outro detalhe que não pode ser esquecido é o sentimento de comunidade existente naqueles arredores; vieram conhecidos de diversos povoados vizinhos para parabenizar os noivos pelos votos.

Em frente à casa dos pais da noiva, acumulava-se uma porção de gente que fazia fila para cumprimentar os noivos. Todos os que chegaram por último queriam, no fundo, abraçar a noiva e ver como ela estava vestida. Um bolo grande foi exibido na sala, adornado com confeito muito doce, em tons claros, que davam uma pompa muito própria à lógica da ocasião e hipnotizavam as crianças, que aguardavam sem disfarçar a pressa para degustar aquele pedaço de paraíso.

Uma fila interminável se formou para quem quisesse tirar foto com o novo casal. A festa não tinha hora para acabar, e todos se espalhavam pela parte iluminada do terreiro para festejar a união matrimonial. Diferente dos casamentos de muitos Buendía, este não se arrastou por dias. Mas talvez houvesse a mesma alegria e esplendor das noites de um século atrás em um pequeno vilarejo perdido.

Antes de tudo

“Foi tranquilo até as 16h; o casamento iniciaria às 19h. Até começar a atrasar o vestido, que chegaria às 15h, e os convidados também. Às 19h eu já estava pronta — não teve essa de noiva se atrasar. Foi o padre quem se atrasou. Fiquei sozinha no quarto esperando meu pai”, desabafa Elaine, já achando graça do acontecido.

Muitas pessoas próximas à noiva, e a própria família do noivo, foram responsáveis pelos preparativos da cerimônia e da festa. Eles ajudaram os pais da noiva até nos mínimos detalhes. Elaine se rendeu ao ritmo do próprio casamento, da própria festa imposta ao seu cotidiano.

A daguerreotipia moderna e o amor

Como na família dos Buendía, uma cerimônia nesse estilo implora por dois detalhes históricos: o registro fotográfico e o amor. São fatores incluídos no mesmo processo histórico. 

O primeiro, e menos vital, consiste na mecânica da física em formar imagens, o que ficou a cargo do repórter. As lentes e a carcaça são extremamente frágeis, assim como a própria vida: a superfície é facilmente riscada e está sujeita à oxidação; por isso, precisam ser conservadas com cuidado.

Já o amor, não me cabe explicação alguma.