O tempo e o trovador: Zé Ramalho sob o céu de Rio de Contas

Will Assunção é especialista em comunicação e colunista do WA.

O cantor Zé Ramalho se apresentou no Festival da Primavera ─ Foto: Will Assunção/WA

“A voz é um rio que não se cala, mesmo quando o silêncio é o que resta.”
— Anônimo nordestino

Há cidades que parecem esperar o som certo para despertarem completamente. Rio de Contas, encravada na Chapada Diamantina, é uma delas. Suas ladeiras coloniais, seus telhados cobertos de história e o frio que desce das serras guardam um tipo de quietude que só a música é capaz de romper. Na noite em que Zé Ramalho subiu ao palco do Festival da Primavera, essa quietude foi rasgada por uma voz que carrega o peso da profecia e o consolo do tempo.

Zé Ramalho não canta para o presente — ele o atravessa. Há algo de ritual no instante em que ele aparece: o público se ergue, como quem reconhece um sacerdote. A luz, azulada e branda, molda-lhe o rosto como se o próprio palco fosse um altar improvisado. Quando ele diz, com simplicidade, “É um imenso prazer estar em Rio de Contas, uma cidade linda do sertão baiano, repleta de energia”, o público reage não com euforia, mas com reverência. É o prenúncio de um encontro entre o humano e o mítico.

Os primeiros acordes de “Cidadão” cortam o ar como lâmina antiga. Cada verso ecoa entre as fachadas coloniais, e a praça inteira parece compreender, ainda que sem dizer, que o Brasil permanece o mesmo — o mesmo país que Zé Ramalho descreve desde os anos 1970, com sua ironia, misticismo e desencanto. Quando ele canta “Batendo na Porta do Céu” e “Entre a Serpente e a Estrela”, o show ganha o tom de uma reza pagã, um diálogo entre a fé e o desespero, entre o sertão e o cosmos.

O público, diverso em idade e origem, canta junto — não apenas por nostalgia, mas por reconhecimento. Em tempos de ruído digital, há algo de subversivo em ver centenas de pessoas repetindo versos inteiros, sem pressa, sem distração. Quando Zé anuncia “Táxi Lunar”, a multidão acende as lanternas dos celulares, e o gesto coletivo transforma o céu da Chapada em uma constelação humana. “Vamos pegar um táxi para uma viagem estelar”, diz o trovador, e naquele instante, a viagem acontece.

Há algo de xamânico em sua presença. A voz, que mistura gravidade e ternura, parece nascer da terra e voltar a ela. Em “Beira Mar”, “Garoto de Aluguel” e “Chão de Giz”, o público respira junto com ele — há um compasso invisível entre o artista e as memórias que cada um carrega. É como se suas canções não fossem apenas ouvidas, mas recordadas, revividas.

O show muda de temperatura quando surgem os primeiros acordes de “A Terceira Lâmina”. O ritmo do forró, a percussão viva, a sanfona que sopra vento e saudade: tudo convida ao movimento. A praça se transforma em salão, e os passos dançados sobre o calçamento ecoam como batimentos cardíacos. Em seguida, “Frevo Mulher” explode em ritmo e cor, e por alguns minutos, a esperança — essa entidade frágil e persistente — parece possível.

Mas Zé Ramalho nunca encerra uma apresentação sem lembrar que a beleza também é resistência. Quando entoa “Admirável Gado Novo”, não há espaço para o devaneio. O verso — “Vocês, que fazem parte dessa massa, fiquem em paz” — é um espelho incômodo. O público o canta com fervor, talvez sem perceber que, ali, a canção ainda fere. É uma despedida e um aviso.

O bis chega como um alívio, uma volta breve à humanidade do artista. Zé sorri, agradece, acena. Sua figura, iluminada contra o fundo escuro da serra, parece a de um peregrino prestes a seguir viagem. Quando enfim o silêncio retorna, percebe-se que o que se ouviu naquela noite não foi apenas um show, mas uma confissão cantada.

A praça demora a se esvaziar. O som já cessou, mas o eco persiste — como se as pedras coloniais guardassem, entre as frestas, um resto de melodia. É assim com as vozes que importam: não pertencem ao instante, mas ao espaço entre o canto e o silêncio. E é nesse intervalo que Zé Ramalho continua — não como um homem do passado, mas como um cronista do eterno retorno brasileiro.