Will Assunção é especialista em comunicação e escreve sobre cultura e sociedade
Marie Genevieve sobreviveu à guerra e se refugiou no Brasil ─ Foto: Will Assunção/WATomada pelo espanto e pela curiosidade, Genevieve conseguiu ver algumas pessoas se abraçando desesperadamente. No entanto, o que, na verdade, a jovem francesa contemplou foi uma porção de judeus se despedindo de parentes e amigos após serem capturados por soldados nazistas e destinados a algum campo de extermínio na Alemanha.
Naquele instante, guiados pelo instinto de humanidade, opositores ao nazismo, muitos deles testemunhas do episódio da captura dos judeus, armaram um plano para tentar impedir que a locomotiva, sob comando dos nazistas, levasse seus vizinhos fadados a mais desumana crueldade e, tragicamente, à morte. O chefe da estação, um mecânico e o pai de Genevieve conseguiram alterar o trajeto do trem, relembrou a francesa.
Pouco antes da partida do comboio ferroviário, os cidadãos franceses armaram uma emboscada para os nazistas. O comandante daquela operação, que levaria os judeus para um campo de concentração, foi morto, e o restante dos soldados alemães se viram em desvantagem. Diante da situação, os homens de Hitler não poderiam fazer muita coisa. Assim que os judeus perceberam que estavam salvos “foi aquela alegria”, recordou a sobrevivente, resgatando os relatos da história mais sombria da humanidade diretamente do passado.
Memórias de uma guerra
Os bombardeios sofridos pela França formam lembranças dos tempos de guerra que Genevieve não consegue esquecer. Em meio ao fogo nazista, ela viu alguns de seus vizinhos serem raptados por soldados do exército de Hitler. A francesa, que sobreviveu aos conflitos, conta que certa vez os lançamentos aéreos começaram, e todos estavam jantando, quando, de repente, ouviram, à mesa, um barulho ensurdecedor.
Seus pais e seu irmão correram e ficaram em pé, apoiados nos alicerces da casa onde moravam para, caso o bombardeio atingisse a área onde estavam, todos pudessem ter uma chance, ainda ínfima, de sobreviver. Certa vez, uma bomba chegou a explodir a cerca de 5 km da comunidade de onde ela morava. Em outro episódio, todas as janelas tiveram os vidros estilhaçados por conta de uma explosão mais próxima, descreveu.
Pouco tempo depois de a Guerra ter começado, ela e seus colegas tiveram que interromper os estudos após um jipe explodir no caminho que faziam para chegar à escola. “Todos nós queríamos ver o que havia acontecido, mas tivemos que interromper os estudos”, contou. Com pouco mais de dez anos, Genevieve teve que morar durante um ano no campo com o seu avô, enquanto os conflitos assolavam diversos países da Europa.
A Segunda Guerra Mundial esconde histórias particulares de pessoas comuns que viveram o maior conflito da humanidade. A francesa Genevieve Marie Sertier, com 80 anos hoje, sobreviveu aos ataques sofridos pelo seu país e conta como foi ver o exército francês ter que enfrentar 3,3 milhões do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), enquanto os Aliados (União Soviética, Estados Unidos e Império Britânico, como as principais forças) dispunham naquele momento de 2,8 milhões em tropas.
A Guerra explodiu
É bem provável que a Segunda Guerra tenha começado em Gdansk, no dia 1º de setembro de 1939, quando um navio alemão atacou um forte polonês. Para Genevieve, a principal sensação sentida nos primeiros momentos do conflito mundial foi um medo avassalador, um pavor inominável, principalmente pelas notícias que chegavam à população e pela narrativa de horror tecida pelos adultos. Já o fim foi descrito com uma simples palavra pela francesa: alívio.
“Naquela época, tudo o que você comprava era azul, branco e vermelho: as cores da bandeira da França”, relembrou sorrindo. Ela lembra com a doçura típica de quem venceu os traumas de um tempo remoto. O imperador japonês decretou rendimento no dia 15 de agosto de 1945, após os EUA lançarem uma ogiva nuclear sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no dia 6 de agosto daquele mesmo ano, sob o governo de Harry S. Truman.
Minha história
Segundo Genevieve, que hoje é uma simpática senhora que vive em Jussiape, na Bahia, a 540 km da capital Salvador, e se dedica à missão de ajudar os mais pobres, Hitler nunca foi visto como um gênio do mal pelos europeus, especialmente pelos franceses, mas um símbolo nefasto que levou a Europa e toda Alemanha ao caos.
A imagem de célebre estrategista que Adolf Hitler cultivou, além de gênio político-militar, chegando a ser comparado inúmeras vezes a Napoleão, se deu pelos primeiros sucessos em batalhas, ocasionados meramente pela sorte. O Führer, na verdade, era extremamente vaidoso e gostava de investir e se arriscar, exibindo-se para metade do mundo, literalmente.
Nesta história, a luta dos judeus ganha força, e o mito de que eles eram passivos na maior guerra vivida pelo mundo é desmentida. Essa é a visão de Marie. Outro fato é que os soviéticos decidiram a guerra, boa parte do mérito é deles, uma vez que em campo mataram dez vezes mais alemães que americanos e britânicos juntos. E, ao total, as perdas de vidas humanas somam-se mais de 70 milhões; entre eles, negros, homossexuais, judeus, deficientes físicos e soldados, ao invés de 40 milhões como nos sempre foi passado.
Vinda para o Brasil
Genevieve só viria para o Brasil depois de todos os países envolvidos terem declarado o fim da guerra. Tomada por uma nova consciência, ela agora trazia consigo uma filosofia na bagagem, moldada ao horror vivido na Europa, como herança da maior guerra que o mundo já enfrentou. Sua família, naquele momento, se organizava para continuar a seguir a vida e todos eles estavam prontos para outra guerra, lembra. “A gente tem que aprender a viver. Saber viver bem, porque se começar outra guerra...”, ouvira de seu pai, que já havia testemunhado a Primeira Guerra, antes de partir para o Brasil.
Pouco tempo depois, Genovieve se uniu a um grupo de jovens humanitários, viajou pela Europa, passando por Roma, capital da Itália, onde já estava preparada para se dedicar a uma nova vida: servir a Deus. Lá conheceu muita gente que influenciaria os seus passos seguintes. “Aprendi bastante coisa importante, como o amor e a vida”, disse a humanitária.
Em suas andanças pelo sul da França, onde passou algum tempo alojada, teve a oportunidade de conhecer a irmã de Antoine de Saint-Exupéry, autor de “O Pequeno Príncipe”, romance clássico de grande teor poético e filosófico. “Conheci-a perto da casa dele no sul da França. O irmão dela escreveu um livro, ‘O Pequeno Príncipe’”, relatou.
Nesse meio tempo, Genevieve se inscreveu em um programa missionário que a traria ao Brasil para realizar seu maior desejo: conviver com povos indígenas. A experiência se concretizou após deixar a Europa de navio e, mais tarde, embarcar em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) rumo ao Mato Grosso, onde viveu por um período entre os indígenas Tapirapé. “Para mim, foi realmente um encantamento, eles possuem os mesmos defeitos que a gente porque são humanos. Mas são de uma humanidade...”, recorda, deixando a frase em suspenso, como se ainda buscasse palavras para definir o que viveu.
Genevieve, que nunca pensou em retornar ao seu país de origem, voltou à França depois de décadas, onde vive atualmente com familiares. Antes disso, já havia visitado amigos e parentes na Europa, mas garante que o Brasil nunca deixou de ser parte de sua alma. “Você não imagina como o Brasil cativa a gente!”, disse, com o olhar marejado, pouco antes de se despedir da reportagem. Entre a paz e o risco de tensões que possam levar a uma nova guerra mundial, ela descobriu que a humanidade, a mesma que viu resistir nos trilhos da estação de Annonay, sobrevive mesmo em tempos sombrios. No fim da conversa, deixou um último conselho: “Não estranhe os franceses ─ se um dia conhecesse algum. Eles são um pouco frios, não são como os brasileiros”.