Folião protesta contra ‘cidade sem lei’ no carnaval de Rio de Contas

Will Assunção é turismólogo e escreve sobre cultura, comportamento e sociedade

Folião protesta contra “cidade sem lei” ─ Foto: Will Assunção/WA

Protesto em cortejo tradicional expõe a crise de identidade do carnaval histórico de Rio de Contas

O tradicional cortejo das baianas, um dos momentos mais emblemáticos do Carnaval de Rio de Contas, ganhou contornos inusitados neste ano. Entre o colorido das saias rodadas e o som das marchinhas, um folião empunhava uma placa com os dizeres “UMA CIDADE SEM LEI!”. O protesto, silencioso e direto, rompeu o clima festivo da segunda-feira de carnaval e expôs o descontentamento de parte da população com o rumo que a festa tem tomado.

O gesto simbolizou um sentimento crescente entre moradores e frequentadores antigos da cidade: a percepção de que o Carnaval de Rio de Contas, considerado um dos mais tradicionais do interior da Bahia, vem perdendo sua essência cultural. O que antes era sinônimo de encontro entre tradição, música e patrimônio histórico, agora é visto por muitos como um evento dominado pelo turismo predatório e pela falta de controle público.

Logo no primeiro dia da festa, foliões habituais perceberam que algo estava diferente. Paredões de som invadiram as ruas estreitas do Centro Histórico, o volume excessivo colocou em risco o casario tombado e as disputas musicais transformaram a calmaria da cidade colonial em uma arena de ruído. O cenário remeteu a 2011, quando episódios semelhantes já haviam causado indignação e danos ao patrimônio.

Além do som ensurdecedor, moradores relataram o aumento de comportamentos desordeiros. Casas históricas foram transformadas em alojamentos improvisados para grupos de jovens, muitos deles menores de idade. O consumo de drogas, a depredação de espaços públicos e o acúmulo de lixo nas ruas contrastaram com a imagem de uma cidade que, há pouco tempo, ostentava o título de “Cidade Cultural da Bahia”.

Para o folião que protagonizou o protesto, o problema começa pela ausência de curadoria artística. “Não há uma seleção que garanta coerência entre as atrações. O resultado é uma mistura confusa, sem identidade. São dois carnavais coexistindo — o da cultura e o da desordem — e eles não se dialogam”, criticou. “A festa está sem direção. Falta lei, falta critério, falta cuidado”, lamentou outro folião.

Outros moradores, no entanto, enxergam o fenômeno com menos pessimismo. Uma foliã defendeu o formato atual da festa. “Houve uma assembleia pública, e a própria população escolheu esse modelo. É um carnaval democrático, que tenta agradar a todos. Talvez não seja mais tão cultural, mas continua sendo do povo”, ponderou.

A tensão entre tradição e modernidade divide a cidade. De um lado, os que temem o desaparecimento de um patrimônio imaterial que sempre diferenciou Rio de Contas das demais festas do interior. Do outro, os que veem na adaptação às novas demandas turísticas uma forma de manter a economia local aquecida. No meio desse impasse, o poder público tenta equilibrar interesses, mas as concessões feitas a setores do entretenimento têm provocado questionamentos.

Especialistas apontam que o perfil do visitante também mudou. O chamado “ecoturista”, público habitual da cidade e responsável por grande parte da receita sustentável local, tem sido substituído por turistas de passagem, atraídos mais pelo som alto e pela aglomeração do que pela experiência cultural ou ecológica. Essa transformação ameaça não apenas a vocação turística de Rio de Contas, mas também o seu frágil equilíbrio ambiental.