Will Assunçãoé turismólogo e especialista em comunicação e escreve sobre cultura e sociedade
Baiana no Carnaval de Rio de Contas ─ Foto: Will Assunção/WA
Entre o eco da cultura e o silêncio das pedras, Rio de Contas enfrenta o dilema entre tradição e predaçãoOs costumeiros foliões do Carnaval de Rio de Contas chegaram à cidade secular esperando a mesma explosão de cores, sons e afetos que marcam todos os anos a festa. Mas algo estava fora de lugar. Os tambores ainda rufavam, as serpentinas voavam, e, mesmo assim, o espírito parecia deslocado, como se o coração da folia tivesse perdido o compasso.Encravada na Chapada Diamantina, no interior da Bahia, Rio de Contas é uma joia colonial. Suas ruas de pedra, casarões de janelas azuis e igrejas do século XVIII guardam um patrimônio arquitetônico que sobreviveu a séculos de história e esquecimento. O Carnaval, outrora íntimo e cultural, era a expressão mais viva dessa herança ─ uma celebração onde tradição e identidade local se encontravam. Mas neste ano, sofreu um golpe duro: o da descaracterização.O turista predatório — aquele que consome o destino, mas não o compreende — tem alterado a natureza de uma das festas mais belas do interior baiano. As cenas se repetem: carros equipados com paredões de som invadindo as vias centrais, disputas barulhentas que fazem tremer o casario tombado, residências transformadas em alojamentos improvisados, jovens — muitos deles menores — sob efeito de drogas. A cidade, antes um refúgio de delicadeza e história, tornou-se palco de uma carnavalização da própria desordem.Rio de Contas, recentemente reconhecida como “Cidade Cultural da Bahia”, parecia este ano ignorar o próprio título. As atrações do circuito soavam deslocadas, sem diálogo com a essência local. O Carnaval que um dia reverenciou as raízes artísticas e o talento dos moradores agora vacila entre dois caminhos: preservar sua alma ou se render à conveniência de um modelo econômico que transforma cultura em produto.Esse dilema não é exclusivo de Rio de Contas. Em quase toda cidade turística do Brasil, paira a mesma dúvida: resistir ou vender-se? A cidade, que já abrigou o artista Zofir Brasil e conserva vocação natural para o ecoturismo, vem perdendo a oportunidade de atrair um público que valoriza o que ela tem de mais singular: a identidade cultural do sertão. O novo formato da festa ameaça afastar o ecoturista, esse visitante sensível, que deixa uma contribuição econômica mais sólida e sustentável.A aura cultural que brota entre os casarões históricos foi ferida. A cada caixa de som instalada, um pouco do silêncio sagrado das pedras parece se dissolver. A escolha por esse modelo de entretenimento de massa pode desencadear transformações irreversíveis, não apenas no cenário cultural, mas também no equilíbrio ecológico da região.Logo após os quatro dias de euforia, quando o último acorde se apagou e o confete cedeu lugar à poeira, o que restou foi um sentimento coletivo de perplexidade. O Carnaval de Rio de Contas, símbolo de uma tradição identitária, parece ter chegado a um ponto de inflexão. A questão agora é: ainda há tempo de reverter a perda? Se o novo formato persistir, a cidade talvez continue a dançar, mas ao som de uma música que já não lhe pertence.