Will Assunção é turismólogo e especialista em comunicação e escreve sobre cultura e sociedade
Representação da “Nega do Zofir” vence concurso de fantasias ─ Foto Will Assunção/WA
Representação da “Nega do Zofir” vence concurso de fantasias ─ Foto Will Assunção/WANo carnaval de Rio de Contas, a fantasia campeã reacende o debate sobre a perda e o legado da arte popular de Zofir Brasil — o artista que esculpiu a identidade da Chapada Diamantina em pedra bruta
A “Nega do Zofir” desfilou no carnaval de Rio de Contas — ainda que em espírito livre de protesto. A fantasia vencedora do Concurso de Fantasias 2025, na categoria “criatividade”, desfilou na terça-feira de carnaval sob aplausos, como se o cortejo de baianas que a precedia abrisse caminho não apenas para a festa, mas para uma memória coletiva que teima em não se apagar. A obra, transformada em alegoria, é um tributo à escultura supostamente derrubada da “Nega”, uma figura de pedra vulcânica esculpida pelo artista plástico Zofir Oliveira Brasil, em algum momento entre os anos 1960 e 1970, e que ficou ausente por algum tempo do alto da Serra das Almas.
A escultura feita por Zofir Oliveira Brasil, Eupidio Martins e Barroco Abreu foi batizada inicialmente de “Escrava da Natureza”. A “Nega”, com seu cachimbo e seu olhar sereno, sempre foi mais do que uma escultura, era um farol poético, uma espécie de guardiã da cidade, à beira da estrada ecológica que liga Rio de Contas a Livramento de Nossa Senhora. Desde que foi derrubada, em junho de 2010, o vazio deixado no mirante é tão físico quanto simbólico. “Quem admira a pedra esculpida uma negra fumando cachimbo na estrada ecológica sente, agora, um enorme vazio ao perceber que a escultura não está no alto da Serra das Almas”, lamentou um folião durante o desfile.
O que impressiona não é apenas o desaparecimento da escultura, atribuído à ação de vândalos, mas a lentidão do poder público em restaurar o que ela representava: um símbolo de resistência, identidade e orgulho popular. A “Nega do Zofir” é uma ausência que se transformou em metáfora da negligência cultural brasileira — o destino quase previsível das obras que nascem fora dos museus, criadas por mãos sem diploma, mas com talento ancestral.
Rio de Contas, com suas ruas de pedra e sobrados coloniais, é uma cidade que vive entre o passado e a promessa. A fantasia campeã, mais do que uma brincadeira carnavalesca, é uma forma de protesto artístico. No carnaval, o riso e a dor dançam juntos, e a “Nega”, desfilando entre confetes, é a prova viva de que a memória também sabe sambar. O gesto dos foliões é, portanto, um ato político: reerguer, mesmo que por uma noite, o que o descuido derrubou.
Há quem diga que a arte de Zofir Brasil nasceu da falta. Falta de recursos, de reconhecimento, de tempo. Negro e pobre, o artista de Ituaçu moldava suas esculturas com o que o mundo lhe dava: sobras de ferro, restos de madeira, pedras encontradas no caminho. Mas, no olhar do artista, nada era resto. Tudo podia ser reencantado, resignificado, refeito. Zofir fez do improviso um estilo e do cotidiano, uma epifania.
Walter Salles, que filmou em Rio de Contas parte de sua obra Abril Despedaçado (2001), reconheceu em Zofir um artista de “humor cáustico”, capaz de rir da própria miséria sem perder a ternura do gesto criador. Zofir não foi apenas um escultor, mas um contador de histórias em relevo, um cronista da rocha. “Uma menina do departamento de arte, de origem européia, vaticinou: ‘Esse Zôfir é a misturra de Duchamp com o Bispô do Rosariô. É fabulosô mesmô’”, revelou Salles.
Sua obra é de difícil catalogação. Algumas peças estão em coleções particulares; outras repousam em praças, em quintais, em ladeiras esquecidas. A “Nega”, contudo, era sua obra mais emblemática — pela força simbólica, pela localização, e talvez por sua imponência silenciosa diante da paisagem. Ela olhava para o horizonte como quem compreendia a passagem do tempo e, por isso mesmo, parecia eterna.
A ausência da escultura, portanto, ecoa como uma espécie de mutilação estética da cidade. Rio de Contas perdeu não só uma obra de arte, mas também um ponto de convergência emocional entre passado e presente. E, paradoxalmente, é no carnaval — o território do efêmero — que essa permanência se reafirma. Ao premiar a fantasia “Nega do Zofir”, a comissão julgadora não apenas reconheceu a criatividade de um grupo de foliões, mas também validou um ato de resistência simbólica. Foi uma vitória da memória sobre o esquecimento. No palco alternativo, onde a fantasia desfilou, a arte popular voltou a ocupar o centro do espetáculo, ainda que por breves minutos.
A história da “Nega” não é apenas a história de uma escultura desaparecida. É a história do Brasil profundo, onde a arte resiste à margem, e os artistas, muitas vezes, são lembrados apenas quando suas obras já não existem.